Carlos Fino está a fazer-se doutor do outro lado do Atlântico

Antigo jornalista da RTP vive no Brasil há 13 anos. Está aposentado, mas não parou: está prestes a completar um doutoramento sobre as relações (e a falta delas) entre os dois países.

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Momento da entrada de tanques norte-americanos em Bagdad, para onde Carlos Fino foi enviado pela RTP em 2003 para cobrir a segunda invasão do Iraque DR
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Cartão de imprensa de Carlos Fino durante a segunda invasão do Iraque, em 2003 DR
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O jornalista integrou uma delegação oficial portuguesa que em 1987 se deslocou à ex-URSS de Mikhail Gorbachev DR
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Carlos Fino em Brasília, em 2006 DR
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O jornalista foi agraciado com um diploma de "notório saber" pela Universidade de Brasília DR

Carlos Fino tem descoberto que Pero Vaz de Caminha estava enganado. Na carta que escreveu ao rei D. Manuel, a 1 de Maio de 1500, dando conta da chegada da frota liderada por Pedro Alvares Cabral ao Brasil, o escrivão elogiava as características do solo brasileiro. “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”, é a frase que lhe é habitualmente atribuída. “Ele só viu uma parte do território quando aqui chegou”, comenta, entre sorrisos, o antigo jornalista da RTP, que desde há 13 anos vive em Brasília.

No “quintalzinho” de sua casa, Fino cultiva rosas e cuida de algumas árvores. Só que o terreno do Planalto Central, onde fica a capital brasileira, não podia ser mais distinto daquele que Pero Vaz de Caminha viu na costa, no século XVII. “A terra aqui pobre e tem muitas pragas”, conta o repórter que, entre outras funções, foi correspondente da RTP em Moscovo durante os anos 1980, em plena Guerra Fria. Essas condições do território obrigam-no a esforços redobrados para manter vivas as espécies que alimentam o seu hobby.

Carlos Fino precisa do escape entre flores e frutos para o ajudar a manter uma “disciplina diferente” daquela a que estava habituado enquanto foi jornalista, durante cerca de 40 anos. A responsabilidade dessa mudança é do projecto a que está dedicado, desde que se aposentou da RTP. O repórter está a escrever a sua tese de doutoramento. Chamou-lhe “A incomunicação de Portugal/Brasil. Razões do estranhamento” e ainda que o grau seja na área de Ciência da Comunicação, cruzam-se matérias de História e das Relações Internacionais.

“A investigação corresponde a uma interrogação com a qual vivi durante os oito anos em que fui conselheiro de imprensa na embaixada: como é que se formou este distanciamento entre Portugal e o Brasil”, precisa ao PÚBLICO, numa conversa por Skype. “Por um lado, há sempre, de uma e outra partes, uma espécie de tropismo no sentido da aproximação, mas, por qualquer relação misteriosa, o contacto entre Portugal e Brasil nunca se desenvolveu como poderia”, acrescenta.

A culpa é de Camões

A tese de doutoramento tem orientação partilhada por académicos da Universidade de Brasília e da Universidade do Minho. Nela, Carlos Fino investiga as raízes do afastamento entre os dois países que “começam na própria colonização” e depois têm um “encadear de factos históricos” – a tentativa de Portugal reconstituir o estatuto colonial do Brasil após o fim das guerras peninsulares; o “jacobinismo” dos primeiros anos da República brasileira ou os episódios com os dentistas daquele país, já no final do século XX – que criaram um mal-estar que “não tem sido possível reverter”.

O antigo jornalista defende também que Portugal não tem tido um verdeiro interesse pelo Brasil. E a culpa até a podemos encontrar em Luiz de Camões. “Falta um canto aos Lusíadas. Camões assinala a epopeia portuguesa em África e na Ásia, mas não a do Brasil. Não estando nos Lusíadas, essa parte da história não se fixou no imaginário nacional”, ilustra.

As portas do Brasil abriram-se para Carlos Fino em 2004. No ano anterior, tinha sido o enviado da RTP ao Iraque para a cobertura da segunda ofensiva norte-americana no país. Quando os bombardeamentos começaram em Bagdad, na madrugada de 20 de Março, estava em directo para a RTP, através de videofone. Foi por isso o primeiro jornalista no mundo a dar conta do início das operações militares dos EUA.

O “furo” teve grande impacto nos meios mediáticos brasileiros, já que a emissão do canal público português passava naquele país fruto de uma parceria com a TV Cultura, de S. Paulo. Nas semanas seguintes, fez directos para o canal paulista praticamente todos os dias, depois de terminado o trabalho para a RTP. Também respondeu a várias chamadas de outros órgãos de comunicação brasileiros. No final do conflito, Carlos Fino foi convidado a ir ao Brasil fazer uma série de conferências. Por coincidência, na mesma altura, o então embaixador de Portugal em Brasília, António Franco, convida-o para ser conselheiro de imprensa na embaixada, um cargo que tinha ficado vago. Aceitou e ocupou essas funções oficiais entre 2004 e 2012.

Quando deixou a embaixada de Portugal em Brasília, ainda pensou que pudesse continuar a fazer jornalismo a partir do Brasil, eventualmente como correspondente de algum órgão de comunicação social português. Afinal, era um homem habituado à função. Além de ter estado em Moscovo durante a Guerra Fria – e o colapso da União Soviética –, foi também correspondente da RTP em Washington e Bruxelas, tendo igualmente feito reportagem para o canal público em várias guerras, da Tchetchénia, ao Kosovo, passando pelo Afeganistão, além do Iraque.

“Ainda fiz alguns contactos. De uns nem sequer tive resposta. A própria RTP [com quem mantinha formalmente vínculo laboral] estava mais interessada em que eu saísse”, recorda. Carlos Fino acabou por aposentar-se. Entretanto, durante o período em que trabalhou na embaixada, conheceu a mulher com quem está casado. O plano de vida passou, por isso, por manter-se a viver no Brasil. “Ela ainda tem alguns anos para se reformar. Quando isso acontecer, vamos viver entre cá e lá”, antecipa.

Antes disso, tem também uma tese de doutoramento para acabar. O calendário inicial implicava que a entregasse em Outubro, mas o trabalho vai precisar de mais uns meses de maturação: “Talvez em meados do próximo ano”.

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