O antes e o depois

Sobre 24 Frames, de Abbas Kiarostami.

Foto
DR

O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

A imagem instantânea provocava a Abbas Kiarostami uma inquietação em três momentos: primeiro, a captura da imagem; segundo, o momento que a antecedia; terceiro, o que lhe sucedia. Em 24 Frames, o autor iraniano retira o instante a 24 imagens do seu arquivo pessoal, entre fotografias e pinturas que guardou ao longo de 40 anos, e devolve-lhes uma vida, animando-as. Foi um projecto de três anos, auto-financiado, e que, por força da sua morte em Julho de 2016, foi terminado pelo seu filho, Ahmad Kiarostami.

Nesta experiência estético-poética, o espectador vai percorrendo com o olhar o que parecem ser episódios da vida do autor, em fotogramas numerados que remetem para o universo onírico e poético com que Kiarostami tratava a realidade. A primeira imagem é de um quadro de Pieter Bruegel, Caçadores na Neve, já citado diversas vezes por outros cineastas, e denuncia o propósito da obra: o retrato de cenas quotidianas e o desejo de as tornar mais belas ou de as aproximar do que desejaria que elas tivessem sido. É o único momento em que a divisão temporal é evidente. Nos restantes, não é nítido o momento do instante da fotografia, que corre desde o início ao ritmo cinematográfico de 24 fotogramas por segundo.

Ao longo do filme, o espectador vai experienciando as cenas em contacto íntimo com a natureza, algumas muito provavelmente passadas ao pé da casa onde o cineasta vivia, em frente ao Mar Cáspio, numa óptica contemplativa. Os enquadramentos com a presença de janelas e de parapeitos, incluindo a perspectiva a partir do interior de um carro em movimento, são típicos da sua mise-en-scène, e remetem de imediato para o ambiente intimista de Dez (2002), filmado com câmaras fixas no interior de um carro.

Os animais habitam as imagens numa atitude impassível – vacas, cães, ovelhas, veados –, ora efectuando uma espécie de dança, ora descansando serenamente. Mas é sobretudo a presença de aves, com realce para corvos e gaivotas, cujo som enche a sala de cinema, que preenche o imaginário do autor. Os corvos e outros pássaros que habitavam a terra natal do cineasta foram nos últimos anos vítimas de um êxodo forçado de Teerão, devido aos altos níveis de poluição atmosférica. O autor parece querer reforçar aqui, numa clara analogia animista, a importância do equilíbrio do ecossistema na liberdade criativa, que lhe foi vedada pelas mesmas mãos em 1995, quando o governo iraniano proibiu a exibição dos seus filmes no país e o obrigou também a um êxodo forçado em França.

A última imagem é a mais emotiva. São quatro minutos e meio de uma espécie de despedida poética do autor, que retrata alguém que descansa à secretária, com um trabalho cinematográfico perto da finalização, e que inclui uma cena de um filme clássico, ao som de Love never dies, de Andrew Lloyd Webber. Parece querer dizer ao espectador, que esteve a meditar no seu universo por 120 minutos, que a imagem e a obra são indeléveis, ao contrário do seu autor, mortal e passageiro, e que, enquanto houver herança, o seu amor pelo cinema persistirá. 

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