As lições de cinema de Abbas Kiarostami

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Não é apenas uma lição de cinema - é uma janela que se abre para absorver uma forma depurada de ver o mundo

Uma caixa que é uma viagem por um método. Paragens: as pequenas câmaras digitais e a liberdade que trouxeram.

10 sobre Dez
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Five
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ABC África
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10 Dias com Abbas Kiarostami
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Colecção Abbas Kiarostami 20€

Midas Filmes

Em 2002, Abbas Kiarostami materializava de forma ainda mais profunda uma ideia que Rossellini já tinha avançado, em 1954, na sua obra-prima Viagem em Itália: que bastavam duas pessoas, dentro de um carro, para se fazer um filme. Realizou Dez, impressionante longa-metragem de dez segmentos (as boleias que uma protagonista dava) cujo fora-de-campo (Teerão) sufocava a vida interior de cada passageiro desse veículo. Com apenas duas minúsculas câmaras digitais, o carro tornava-se num espaço de liberdade: não apenas a expressão do pensamento de cada pessoa filmada, mas a expressão detalhada de rostos que escondiam histórias pessoais e silenciadas, apenas traduzíveis por uma lente.

10 sobre Dez (2003), por sua vez, é uma viagem com Kiarostami no seu carro - ou pelo seu cinema. Enquanto percorremos a mesma estrada de O Sabor da Cereja (1995), o realizador fala-nos sobre a realização de Dez e os seus princípios de trabalho nas várias etapas de um filme. Kiarostami realiza um gesto raro: a confissão do seu método e da descoberta de etapas libertadoras na sua carreira, como o surgimento das pequenas câmaras digitais e a liberdade de uso que trouxeram para o trabalho desenvolvido nesses anos ("como um Deus omnipresente", diz-nos). Mas 10 sobre Dez não é apenas uma lição de cinema - é uma janela que se abre para absorver uma forma depurada de ver o mundo, sem artifícios, buscando a verdade detrás da forma fictícia de se contar uma história, dentro do próprio método defendido pelo seu autor.

A primeira oportunidade de Kiarostami experimentar, justamente, o uso dessa lente "omnipresente" surgiu em ABC África (2001). Depois de um convite de uma associação humanitária internacional, visita o Uganda para testemunhar a realidade de milhões de órfãos vítimas da guerra civil e da SIDA. Mas ABC é uma aprendizagem pessoal: uma nova cultura (os seus rostos, a sua música, a sua expressão corporal com a qual o realizador se deixa envolver), um olhar livre e sem barreiras de produção (o digital), uma nova interacção com personagens desconhecidas que se interpretam a elas próprias, espontaneamente, nas ruas que visita (gesto que o realizador busca incessantemente nas suas ficções - e efémero, tal como a vida e a morte que a interrompe). Tocante a sequência em que anda sozinho nos corredores escuros dos seus aposentos (um território desconhecido), de electricidade cortada, para voltar ao seu quarto, sem desligar a gravação da câmara DV - é ela a sua vela.

Five (2003) terá sido o resultado prático mais incisivo desse olhar "depurado" do digital: cinco longos planos fixos de paisagens, aparentemente sem cortes, onde se procura jogar com as fronteiras existentes entre um olhar directo sobre a natureza e o enquadramento artificial da sua imagem e sons. O seu subtítulo (Cinco longos planos dedicados a Yasujiro Ozu) presta homenagem a um dos realizadores que talvez mais tenha realizado com "menos" - por assim dizer, as simples relações humanas e o seu enquadramento nos cenários de vida naturais (o espaço familiar e as suas mudanças na paisagem urbana ou rural em que habita). Um trabalho que apela à paciência dos sentidos para enriquecê-los pelo detalhe e as "brincadeiras" feitas sobre a sua percepção (de novo, um filme entre a realidade e o artifício do gesto de filmar, veículo sempre presente no cinema de Kiarostami).

Contudo, a paixão do cineasta pelas pequenas câmaras ter-se-à esgotado pouco tempo depois, vendo que o uso destas não promovia uma expressão mais pura entre quem filma e é filmado, mas um uso mais despropositado e sem método por quem se agarrou à sua leveza. 10 Dias com Abbas Kiarostami, único filme não realizado pelo próprio (produzido na sequência de um workshop no Museu Nacional de Cinema de Turim) será exemplo disso. Uma gravação que não chega a filme - apenas um registo visual do seu trabalho com alunos que tentam realizar filmes "à Kiarostami", e que nada acrescenta à enriquecedora experiência de 10 sobre Dez.

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