Aviação humanitária: voar para chegar onde mais ninguém chega

Como fazer chegar ajuda a locais remotos será o tema da 9ª Conferência Global de Aviação Humanitária, que se vai realiza em Lisboa. O PÚBLICO falou com Samir Sajet, responsável de segurança da aviação do Programa Alimentar Mundial, para explicar este desafio.

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Ajuda humanitária entregue por aviões do PAM no Sudão do Sul, já este ano Siegfried Modola/REUTERS

Quando há um desastre e toda a gente quer sair de lá rapidamente, há alguém que está na linha da frente para chegar o mais depressa possível. Pode ser um sítio afectado por um vírus como o Ébola, pode ser uma localidade remota entre montanhas após um terramoto, como aconteceu no Haiti ou no Nepal, ou uma aldeia cercada pelo Daesh na Síria. O que vai ser levado e como vai ser entregue varia muito: de transporte de equipas de médicos ao envio de arroz, biscoitos nutricionais, óleo alimentar, ou vacinas; podem ir de barco, camião ou avião, serem levadas directamente até ao local, fazer várias escalas, ou serem largadas de pára-quedas. Quem está na primeira linha é normalmente o Programa Alimentar Mundial (PAM), que é responsável pela parte da aviação humanitária das Nações Unidas (e que serve várias outras agências e organizações não-governamentais).

O meio mais rápido é o avião, e é rapidez que é precisa quando há grandes catástrofes e a sobrevivência depende de muito pouco tempo. É desta urgência que fala Samir Sajet, piloto de profissão, e responsável pela divisão de segurança de aviação do PAM. “Somos os primeiros a chegar a locais remotos onde a aviação comercial não está disponível ou não é de confiança”, diz Sajet. “As pessoas estão a morrer. Temos de chegar rápido.” Além disso, o envio por terra tem os seus problemas: “os camiões podem ser saqueados, atacados, os condutores raptados…”

Em Lisboa para preparar a 9.ª Conferência Global sobre Aviação Humanitária, que se vai realizar em Outubro (de 11 a 13, no hotel Ritz), Samir Sajet lembra que na sua tarefa de divulgação da aviação humanitária se depara frequentemente com um grande desconhecimento. “Uma vez, no Paris Air Show” (que reivindica o título de mais antiga exposição de aeronáutica do mundo) pedi um stand. E a pessoa responsável disse que não percebia para que queria eu um stand naquele tipo de evento. “É pena que as pessoas conheçam a aviação comercial e militar, mas não humanitária. Os aviões foram fabricados para todas estas missões, não só para as primeiras duas”, sublinha.

Claro que a aviação humanitária tem as suas especificidades e exigências particulares. Os voos são contratados pelo PAM às companhias de aviação (até agora, nenhuma portuguesa trabalhou com o programa). Os pilotos são assim escolhidos pelas companhias aéreas seleccionadas, mas há um quadro de competências especiais: “Os pilotos têm de ter uma certa experiência e uma certa formação”, diz Sajet.

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Samir Sajet é responsável pela divisão de segurança de aviação do PAM DR

Isto porque podem ter de aterrar em sítios em que não há propriamente um aeroporto. Pode haver uma pequena faixa de terra batida para aterrar, sem sequer ter uma manga que indique a direcção do vento. É um risco acrescido, mas controlado e aceite, diz Sajet. Os aviões levam também equipamento especial de segurança para além da carga.

100 aviões no ar

“Temos 100 aviões a operar em diferentes partes do mundo, mas este número pode ser duplicado ou triplicado de acordo com a necessidade”, diz Sajet. “Mais de 78% do nosso trabalho é de resposta a emergências – naturais ou provocadas pelo homem”, explica.

“Levamos tudo o que possa ajudar a manter vidas, a salvar vidas”. Podem ser biscoitos energéticos que são um dos produtos mais distribuídos pelo PAM (têm uma grande concentração de nutrientes e energia e pretendem “manter as pessoas vivas”). Ou arroz, o mais comum nas aldeias remotas do Nepal onde é preciso ir da capital Kathmandu, durante três horas e meia por estradas arriscadas, até chegar a um aeródromo de onde vão partir pequenos aviões, descreve Sajet. Também pode ser “sementes, farinha, óleo de cozinha”, como tem sido o caso dos produtos lançados para as localidades cercadas pelo Daesh na Síria.

“É uma operação realmente especial, de lançamento de alta precisão a uma altitude de 6000 metros. Usamos equipamento canadiano para os pára-quedas e de uma companhia russa para aviação.” Medicamentos, vacinas, ou outro tipo de materiais de saúde são também frequentemente enviados ou lançados. “Pode lançar-se tudo – é um lançamento de alta precisão, e como vão de pára-quedas, aterram bem”, diz.

No horizonte aparece ainda um maior uso de drones, aeronaves não tripuladas. “Já os usamos para avaliar danos: para enviar um helicóptero é preciso algum tempo, mas posso logo mandar um drone para recolher informação sobre um local onde haja uma emergência”. O próximo passo será agora que levem também carga. “Ainda não é possível, mas estamos a tentar começar”.

Oportunidades de negócio para portugueses

Como a parte da segurança é tão importante, inicialmente as conferências de aviação humanitária (a primeira foi em 2009) estavam mais focadas nesta vertente, antes de juntarem ainda outra: a dos negócios.

“Esta é uma oportunidade única para a aviação portuguesa estar envolvida na aviação humanitária”, diz Samir Sajet. “Os países precisam de conhecimento e estão a comprá-lo. É uma oportunidade para fabricantes, centros de formação, controladores aéreos, enfim, tudo o que tenha a ver com aviação. Os aviões precisam de equipamento, hangares, carros, ferramentas, de asfaltar pistas…”

Na conferência vão estar representantes de organizações humanitárias, companhias aéreas, associações de pilotos, etc, de vários pontos do mundo: “É uma óptima oportunidade para networking”, defende Sajet.

Lisboa foi também escolhida para a conferência porque não tem um gabinete do PAM. E há a coincidência de alguns cargos na ONU serem ocupados por portugueses; se toda a gente sabe que o secretário-geral da ONU é António Guterres, menos saberão que o número dois do PAM, Ramiro Lopes da Silva, é português.

E o PAM é tanto a maior agência humanitária do mundo como tem uma enorme organização logística: tem 2500 pessoas a gerir as acções do programa “por terra, mar e ar”, operando em mais de 90 países, a alimentar mais de 90 milhões de pessoas, com um orçamento de mais de 3,5 mil milhões de dólares.

A escala é enorme e a oportunidade está também no facto de ser preciso levar conhecimento aos locais em que é necessário, argumenta Sajet. “O apoio da ONU é muito temporário. Talvez fiquem dois anos, talvez sejam cinco… Mas vão acabar por sair. E quando saírem, têm de deixar algo”. O que deixam pode ser material – mas isso não chega. “Acredito que para melhorar infra-estrutura tem de se investir nas pessoas. Não é uma questão de comprar equipamento. Tem de se saber usar.” Assim, a ideia do responsável é “fazer muita formação, levar os melhores peritos aos locais para ensinar”, diz. “Aqui também há oportunidade para portugueses – também daria visibilidade a Portugal”, propõe.

A sua mensagem combina a oportunidade de negócio com a necessidade de ajuda. “Há pessoas a morrer e precisamos de chegar a elas. Há coisas que eu vi… Coisas que é difícil acreditar que ainda possam acontecer. Em campos há pessoas a morrer logo aqui”, diz, fazendo com o braço um sinal de uma pequena distância. “A morrer porque não têm comida. E há comida no planeta suficiente para todos.” 

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