Cabarés em chamas

Temer e Trump chegaram ao poder montados num movimento que apresentava como bandeira exatamente o contrário daquilo que eles eram.

Os russos, que dispõem de diversas expressões para hierarquizar de forma crescente a progressão do caos político, descrevem da seguinte forma o grau supremo da confusão: “é como um bordel a arder durante um terramoto”.

Ontem de madrugada descobri que o Brasil tem uma expressão parecida: “o cabaré pega fogo”. A expressão surgiu-me ao seguir as notícias brasileiras que davam conta (tomem fôlego) do aparecimento de uma gravação audio na qual o atual presidente Michel Temer pede para se manter um suborno regular ao antigo presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha para que este se deixe ficar calado enquanto está na prisão, e de uma outra gravação audio na qual o ex-candidato presidencial Aécio Neves, senador do Congresso Brasileiro, pedia por sua vez um suborno para pagar as suas contas na justiça enquanto dizia casualmente, esperemos que por piada, que o dinheiro teria de passar por “um cara que a gente mata ele antes de fazer delação”. Definitivamente, o cabaré pegou fogo.

O que se passa no Brasil e o que se passa nos Estados Unidos não tem só em comum o continente americano e um sistema presidencialista quase passado a papel químico. Há algo de mais profundo a unir a farsa sul-americana com a farsa norte-americana: ambos os presidentes chegaram ao poder montados num movimento que apresentava como bandeira exatamente o contrário daquilo que eles eram. Temer e Trump são o símbolo do que acontece quando a frustração popular é cavalgada pela retórica nacional-populista. Estava muito claro desde o princípio, como aqui então escrevi, que o impeachment de Dilma Rousseff não era o culminar de um movimento para combater a corrupção no Brasil. O movimento pelo impeachment de Dilma era um movimento a favor da preservação da corrupção, cavalgado pelos maiores corruptos do Brasil, sentados em cima das esperanças de muitos brasileiros. Não por acaso esse movimento se concentrou em atacar a única pessoa que, ocupando lugares de mais alto poder na política brasileira, nunca teve contra si a mínima suspeita de corrupção, Dilma Rousseff (já Lula da Silva levará sempre consigo a mácula de bastante ter feito para promover o corrupto sistema de compra de votos no Congresso).

Também no caso norte-americano Donald Trump foi levado até à Casa Branca cavalgando um movimento contra o poder indevido do dinheiro na política americana, contra a finança global e contra a opacidade dos governantes simbolizada pelos tão famosos quanto pífios e-mails que Hillary Clinton enviou a partir de um servidor privado. Deixem-me rir. Trump é o epítome desavergonhado de tudo aquilo que ele critica. Desde o início, a campanha e a administração de Trump foram dominadas pelo dinheiro e pelos multimilionários, controladas pela influência daquilo a que os seus idiotas úteis chamam de “globalismo” e alicerçadas no mais descarado secretismo e conspiracionismo. Trump seria homem para destruir o estado de direito nos EUA, não fosse dar-se o caso de compartilhar mais uma coisa com Michel Temer: a incompetência.

A meio da madrugada, a famosa série de suspense político House of Cards resolveu tuitar uma simples frase em português como referência à crise brasileira: “tá difícil competir”. Isto tem graça quando dito pelos criativos argumentistas da série, mas simplesmente não é verosímil. O famoso vilão que nessa série faz de presidente ficcional é um tipo hiper-competente, e é por isso que já consegue durar há várias temporadas. Na vida real, porém, os dois presidentes dos dois maiores países da América não passam de dois aprendizes de feiticeiro que até agora só conseguiram transformar os seus regimes no tal cabaré, ou bordel, em chamas. Para atingir o grau supremo da hierarquia russa do caos, só fica mesmo a faltar o terramoto.

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