Nova poesia brasileira para ler nas férias

A cantora Adriana Calcanhotto lança esta quinta-feira em Lisboa a antologia É Agora Como Nunca, uma antologia da nova poesia brasileira que nos deixa um retrato estranhamente leve de um país dividido e em crise.

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Adriana Calcanhotto Rui Gaudêncio

O assumido propósito de É Agora Como Nunca, uma antologia da nova poesia brasileira organizada pela cantora e compositora Adriana Calcanhotto e publicada em Portugal pela Cotovia, era conseguir fazer caber num livro facilmente transportável, que se pudesse levar para férias, uma escolha significativa da poesia brasileira contemporânea. “Este é um agrupamento de poemas armado por uma leitora de poesia diletante, não acadêmica ou crítica, que decidiu, em vez de levar nas férias de Verão mais de quarenta livros de poesia contemporânea brasileira, levar um só”, escreve a antologiadora num brevíssimo prefácio.

Acolhendo 41 poetas de registos muito diversos, todos eles nascidos entre 1970 e 1990, a antologia mostra, de facto, a variedade e a energia da nova lírica brasileira, mas talvez cumpra demasiado bem o objectivo de ser um livro adequado a leituras estivais. Com um título que enfatiza o “agora”, não deixa de ser surpreendente o quão pouco se adivinha nestes poemas, ainda que se possam apontar algumas excepções, a conflitualidade e a dura crise política, económica e social que o Brasil hoje atravessa.

O livro é lançado esta quinta-feira, às 18h30, no Jardim de Inverno do Teatro de São Luiz, numa sessão em que participarão, além da antologiadora, Anabela Mota Ribeiro, Pedro Mexia e um dos poetas incluídos, Mariano Marovatto. Mas Calcanhotto, actualmente professora convidada da Universidade de Coimbra, já antes apresentara o livro noutras cidades portuguesas. No Porto, na livraria Flâneur, explicou como se decidira a fazer esta antologia ao saber que o prémio de poesia de Academia Brasileira de Letras de 2015 não fora atribuído por falta de qualidade.

Admiradora dos três membros do júri – o poeta Ferreira Gullar (1930-2016), que morreria pouco depois, a ensaísta Cleonice Berardinelli, que celebrou em 2016 o seu centésimo aniversário, e o poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, que fará dentro de dias 86 anos –, Adriana Calcanhotto hesitou em perfilhar a reacção mais ou menos generalizada dos jovens poetas brasileiros, que, segundo conta, terão argumentado: “eles são velhos, não sabem ler essa nova poesia”.

Ao mesmo tempo que achou “interessante” o gesto dos três académicos, por “pensarem em excelência, o que é raro no Brasil”, a cantora perguntou-se: “Mas afinal o que tem esta poesia que eles não possam entender?”. Foi para responder a essa pergunta que Calcanhotto decidiu mergulhar a fundo na poesia brasileira mais recente, incluindo a que ainda não saltou dos blogues e das revistas electrónicas para as páginas impressas dos livros.

“Não quero ser condescendente com a nova poesia brasileira, mas vi coisas de que gostei muito, e também outras que acho que não qualificaram ainda”, disse a antologiadora no Porto, assegurando que só escolheu poemas de que gostou, mas reconhecendo que alguns poetas poderão estar ausentes por “ignorância” sua, uma vez que não leu tudo. E entre os que entraram, também não sabe se alguns dos mais novos virão ou não a ser grandes poetas: “esse não saber, porque estou dentro do tempo em que estes poetas estão se inventando, foi a coisa que mais me interessou ao fazer esta antologia”.

“A minha pasta do Gullar”

Se a severidade do vetusto júri da Academia foi o pretexto imediato desta antologia, o que lhe serviu de modelo foi “uma pasta de papelão, bem velhinha, bem gasta”, que pertenceu a Ferreira Gullar, uma das grandes referências de Calcanhotto. A cantora assistia a uma palestra do poeta, há meia dúzia de anos, e a dado momento, ao responder a uma pergunta da assistência, Gullar pegou na dita pasta, vasculhou várias folhas e sacou o poema que procurava para ilustrar o que estava a dizer. “Percebi que ele trazia ali os poemas preferidos dele, e aquilo iluminou-me: ele é um génio, anda com a antologia dele, e quando precisa de um poema, está ali à mão”, contou Adriana Calcanhotto. “Esta antologia é a minha pasta do Gullar”.

Para lá da qualidade literária das letras das suas canções, a cantora sempre se interessou pela poesia, e esta não é a sua primeira incursão antológica. Já organizara uma Antologia Ilustrada de Poesia Brasileira para crianças e uma outra de Haikai do Brasil. Mas continua a considerar-se uma leitora diletante, e diz, no prefácio a É Agora Como Nunca, que o conjunto de poetas que nos dá a ler é “totalmente pessoal, intransferível, autoral”, o que também torna impertinente qualquer crítica ao seu livro que não se assuma como um confronto entre gostos diferentes.

Para o gosto do leitor que assina estas linhas, o gosto da antologiadora parece valorizar em excesso uma certa dimensão lúdica da poesia, privilegiando pequenos achados, às vezes mais fortes e surpreendentes, outras vezes anedóticos, ou mesmo pueris. E se não espanta que a cantora tenha ouvido para aliterações e outros jogos sonoros, há casos em que a musicalidade parece ter sido um critério demasiado predominante. Mas sai-se deste livro com vontade de conhecer melhor alguns dos autores aqui incluídos, e essa é provavelmente a principal razão de ser de uma antologia.

E o leitor português até dispõe agora de duas antologias para conhecer melhor a poesia brasileira contemporânea, já que a Elsinore lançou recentemente Naquela Língua, organizada por Francisco José Viegas, que inclui 18 nomes, dos quais apenas sete – Alice Sant’Anna, Ana Guadalupe, Diego Callazans, Laura Liuzzi, Luca Argel, Mariano Marovatto e Marília Garcia –, surgem também entre os 41 que Calcanhotto escolheu. E o facto de os onze restantes poetas seleccionados por Viegas terem também nascido entre 1970 e 1990 torna esta descoincidência mais significativa. Ou talvez apenas indicadora de que na nova poesia brasileira não falta por onde escolher, já que não seria difícil alinhavar uma lista de excluídos de ambas as antologias. Entre os que já estão razoavelmente divulgados em Portugal, este leitor tem uma predilecção por Pádua Fernandes.

É Agora Como Nunca abre com um poema de Ana Martins Marques que se adequa bem a essa função inaugural, e fecha com um poema de Laura Liuzzi que sugere que o fim não é o fim. Liuzzi está também representada com Ponteiro, cujo último verso dá título à antologia, e com Vontade, que se reproduz nestas páginas. Entre outros autores que se poderiam destacar, como Angélica Freitas, Ana Guadalupe ou o poeta inédito Thomaz Ramalho, transcrevem-se ainda dois poemas de Luca Argel e Fabiano Calixto (para o leitor português do seu texto talvez valha a pena explicar que um “baseado” é um charro), nenhum deles particularmente recomendável a leitores de férias que queiram distrair o espírito, o que os torna relativas excepções numa antologia por vezes um bocadinho inofensiva.

 

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