A Cotovia quer voltar a voar

Meio ano após a morte de André Jorge, fundador da Cotovia, Fernanda Mira Barros quer relançar a editora, mantendo a qualidade do catálogo, mas apostando mais na comunicação.

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Fernanda Mira Barros Rui Gaudêncio

Com cerca de 1500 livros publicados, abrangendo ficção e poesia portuguesa e estrangeira, mas dando também uma generosa atenção a áreas mais desprotegidas da edição portuguesa contemporânea, como o teatro ou os clássicos greco-latinos, a Cotovia construiu, ao longo de quase 30 anos, um catálogo marcado pelas convicções e gostos do seu fundador, André Jorge. Meio ano decorrido sobre a sua morte, no final de Agosto de 2016, Fernanda Mira Barros decidiu-se a tentar relançar uma editora na qual foi sendo responsável por várias colecções e que também lhe deve muito do que hoje é.

“Vamos fazer campanhas na comunicação social, e quero reactivar o blogue da Cotovia: ando a escrever às pessoas a perguntar se querem gravar uma leitura de um poema ou de um excerto de um livro nosso”, diz a editora. Enquanto prepara alguns novos lançamentos, a sua principal aposta é agora conseguir aumentar a visibilidade da editora. E a primeira ronda de contactos por velhos e novos amigos da casa, escritores, realizadores de cinema, actores, tem-lhe trazido boas surpresas. “A Cláudia Varejão, que não conheço de lado nenhum, disponibilizou-se a vir cá filmar, à borla, pessoas a ler poemas, o Jorge Silva Melo vai recuperar umas crónicas que escrevia para os jornais, o Vasco Pimentel, que nem sabia bem o que é um blogue, vai escrever sobre som”, conta a actual proprietária da Cotovia.

“As pessoas querem que a editora continue, agora se depois compram livros, isso já não sei”, diz Fernanda Mira Barros. Sabe, sim, que está disposta a pagar para ver. Mas com limites. “Tenho o privilégio de poder abdicar de um salário, e estou a dar-me dois ou três anos para pôr isto bem, mas sei que é muito difícil viver no sector dos livros tal como ele é hoje, e não sou o André, não vou vender o património que herdei dos meus pais para sustentar a editora”, diz.

A conversa com o PÚBLICO decorreu nos escritórios da editora, por cima da livraria que a Cotovia mantém no centro de Lisboa, na Rua Nova da Trindade, entre o Chiado e o Bairro Alto. Um espaço que Fernanda Mira Barros conheceu pela primeira vez há quase três décadas, quando, recém-licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Inglês e Alemão, e pressionada a arranjar emprego por uma família conservadora e pouco indulgente com as estroinices da juventude, se viu um dia a tocar à porta da Cotovia.

“Ainda pensei numa carreira académica e cheguei a dar aulas num colégio”, conta, “mas pertencia a um ex-polícia com quem me dei logo mal, de modo que me demiti, aos 23 anos, e tive de procurar outro trabalho”.

Começou por mandar o currículo à Cotovia, na qual ainda então estavam envolvidos o irmão de André Jorge, o poeta João Miguel Fernandes Jorge, e Joaquim Manuel Magalhães, que Fernanda já conhecia porque se tinha inscrito num curso de mestrado que este orientava. Como não recebera resposta ao envio do currículo, achou melhor enviar-se a si própria, e a insistência foi recompensada. “O André devia estar bem-disposto e achou graça”. Mas também não foram favas contadas. “Lembro-me de que estava um calor horrível e que estivemos duas horas à conversa, e a seguir fui entrevistada por uma psicanalista, ou lá o que era, amiga deles, e depois ainda veio o João Miguel fazer-me umas perguntas”.

O certo é que passou no exame. “Comecei por vender livros – era a única mulher naquele meio, e fui criando uma boa relação com os livreiros –, e depois o André pôs-me a escrever coisas para a editora, e passado um ano estava apaixonada por ele e ele por mim, e foi um grande amor, cheio de ons e offs, e imensas dificuldades, como todos os grandes amores”.

Próximos lançamentos

Esses últimos anos em que André Jorge, já muito doente, continuava a ir diariamente à livraria da Rua Nova da Trindade, não foram fáceis, e Fernanda Mira Barros não esconde que discordava do modo como este insistiu em gerir a editora nessa fase final. “À medida que envelhecia, e sempre a tentar manter isto com o seu dinheiro, foi-se radicalizando, achava que era ofensivo dar às pessoas informação básica, que não lhes ia explicar quem era o Shakespeare, dizia que a Cotovia não era uma agência de notícias”. Uma posição que não subscreve: “Acho que temos de alargar um bocadinho o nosso público, tornar a editora mais visível, dar-nos a conhecer, e se for preciso explicar que o Shakespeare não é assim tão difícil e vale mesmo a pena lê-lo, então é isso que vamos fazer”.

Está decidida a “apostar na comunicação e nas redes sociais”, e contratou mesmo uma pessoa para assegurar essas funções, mas não pretende alterar a lógica editorial. “A Cotovia do André veio a ser conhecida como uma editora elitista, e essa era uma discussão que tínhamos muito cá dentro, saber se nos reconhecíamos nisso, e achávamos que não, que elitista era uma coisa que nos chamavam, mas que não o éramos, porque o que estávamos a fazer era editar livros de que gostávamos”, diz Fernanda Mira Barros. “Em última análise, o que um pequeno editor independente faz é criar uma biblioteca, e se o leitor comum olha para a nossa biblioteca e pensa que se calhar vai ter de fazer um esforço, que vai ser difícil, ou maçador, nós nunca quisemos fazer uma editora assim, o nosso objectivo foi sempre o de tornar acessíveis a toda a gente bons livros que as pessoas, sabe-se lá porquê, acham que são para uma elite”.    

E sublinhando que a editora que herdou “está bem” e que André Jorge conseguiu deixá-la praticamente sem dívidas, acrescenta: “Agora é preciso ver como é que se mantém este perfil e se consegue ter algum dinheiro para pagar um bocadinho melhor às pessoas que aqui trabalham, que são uma equipa leal”. É com esses colaboradores que se propõe redefinir o perfil da editora”, mas “sem penalizar a sua imagem, porque a Cotovia não pode ser uma editora para as massas, e gostamos dela tal como é”.

Na colecção de poesia, quer até “recuperar as capas de papel vegetal, que eram bonitas e sóbrias” e que, não sendo baratas, tinham “uma certa pobreza, eram um statement”.

O objectivo da editora é avançar a um ritmo prudente, lançando dois ou três títulos por mês, e tentar manter, tanto quanto possível, os autores da casa, embora nestes últimos anos alguns dos escritores que nos habituámos a ler na Cotovia, como Teresa Veiga ou o brasileiro Bernardo de Carvalho, tenham começado a publicar noutras chancelas.

Singularidades, o novo livro de contos do poeta e ficcionista A. M. Pires Cabral, um dos principais autores da Cotovia, foi a primeira obra a ser publicada nesta nova fase da editora, mas há já vários outros lançamentos previstos para o primeiro semestre de 2017, incluindo uma nova edição de A Angústia da Influência, de Harold Bloom, cuja tradução, novamente a cargo de Miguel Tamen, acolherá já as alterações que o próprio crítico norte-americano introduziu posteriormente no seu célebre ensaio.

Vão ser também reeditados em breve os três volumes de poesia de Paul Celan editados pela Cotovia nos anos 90, todos eles esgotados: Arte Poética: O Meridiano e outros textos, a antologia Sete Rosas Mais Tarde e A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio, todos eles traduzidos por João Barrento, com a colaboração de Vanessa Milheiro em Arte Poética e de Yvette K. Centeno em Sete Rosas Mais Tarde. E Fernanda Mira Barros espera lançar em breve, numa tradução de José Vieira Mendes, um romance do escritor e etnólogo alemão Hubert Fichte, que morreu aos 50 anos, em 1986, de complicações resultantes da SIDA. Alguns projectos em curso de publicação, como as obras de Bertolt Brecht, vão também prosseguir, e está ainda prevista a reedição dos volumes de Peças Escolhidas de Henrik Ibsen.

Um dos domínios em que o catálogo da Cotovia provavelmente não terá nenhum rival à sua altura é justamente o do teatro, posição reforçada pela já extensa colecção de livrinhos que a editora publica em parceria com a companhia Artistas Unidos. “É uma colecção extraordinária e que vende muito bem, e que resulta de um acordo de cavalheiros com o Jorge Silva Melo”, explica Fernanda Mira Barros. “O Jorge tem total liberdade e nós damos o logótipo e distribuimos os livros”.

Outro reconhecido bastião da editora são os clássicos gregos e latinos, com as traduções da Ilíada e da Odisseia por Frederico Lourenço, mas também com as edições de Ovídio, Petrónio, Tibulo ou Gaio Valério Catulo, e com uma série de ensaios de referência sobre a cultura grega antiga. Recentemente consagrado com o prémio Pessoa, Lourenço, actualmente a traduzir a Bíblia para a Quetzal, é um dos autores mais presentes no catálogo da Cotovia, com mais de vinte títulos publicados, se contabilizarmos as traduções, além da ficção, do ensaio e da poesia.

Fernanda Mira Barros tem também um apreço particular pela colecção Curso Breve de Literatura Brasileira, dirigida por Abel Barros Baptista, cujos 16 volumes incluem, por exemplo, O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, A Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto, e antologias de poetas e contistas brasileiros contemporâneos. “Não temos uma literatura tão pujante como a do Brasil”, diz a editora para confessar que acha estranho os livros brasileiros venderem tão pouco em Portugal.

Colecção que não correu comercialmente muito bem foi a Gato Preto, dedicada ao policial, que ficou suspensa após ter lançado, em belíssimas edições, três livros de um dos grandes autores do género, Lawrence Block. Mas “numa editora pequena e com muitas colecções, é inevitável que algumas vão parando”, reconhece Fernanda Mira Barros. Mas ao mesmo tempo que prepara as comemorações dos 30 anos da Cotovia, que arrancarão ainda este ano, em Setembro, já está a pensar em novos projectos. “Vamos fazer uma coisa para coleccionadores com textos emblemáticos do catálogo: serão livrinhos pequenos, quase quadrados, com papel vegetal, em tiragens limitadas, não repetíveis e provavelmente numeradas, que servirão também como cartão-de-visita da editora, e que gostaria que custassem uns 4 euros”.

 

Notícia corrigida às 10h22: Fernanda Mira Barros licenciou-se na variante de Inglês/Alemão e não em Português/Alemão e foi João Miguel Fernandes Jorge e não Joaquim Manuel Magalhães que lhe fez umas perguntas na entrevista para a sua entrada na Cotovia

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