O fim do Brasil

Bela iniciativa de Francisco José Viegas, da editora Elsinore e da Câmara Municipal de Matosinhos, que patrocina esta edição: dezoito poetas, todos com obra iniciada já neste século, que dão uma ideia nítida do melhor e do mais original que se escreve hoje em português do outro lado do Atântico.

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O editor Francisco José Viegas optou por não procurar traço comum, de geração, de tendência, nesta centena e tal de poemas Nuno Oliveira/Arquivo

O contacto português com a poesia escrita no Brasil é suficientemente escasso e irregular para devermos saudar a bela iniciativa de Francisco José Viegas, da editora Elsinore e da Câmara Municipal de Matosinhos, que patrocina esta importante edição. Os dezoito poetas aqui reunidos, todos com obra iniciada já neste século, dão, sem dúvida, uma ideia nítida do melhor e do mais original que se escreve hoje em poema e em português do outro lado do Atlântico. Não esgota (nem pretenderia fazê-lo) o que haveria para antologiar ao nível mais alto dum universo tão amplo, mas encaminha bem aqueles leitores que, a partir daqui, queiram prolongar a descoberta. E, para muitos, será mesmo de descoberta que se trata, pois quantos, por cá, já lemos Tatiana Pequeno, Alice Sant’Anna, Diego Callazans, Maíra Ferreira ou Nina Rizzi?

Haverá talvez mais hipóteses de já se conhecer alguma coisa de Luis Maffei ou de Roberta Ferraz, mas mesmo um poeta que tem passado parte da sua vida em Portugal, como Luca Argel, será familiar a poucos. E o humor desconcertante de Luca Argel, que, nascido em 1988, se estreou em livro em 2012, é do melhor que podemos ler “naquela língua”. E é também um dos poetas que menos dá a impressão de escrever noutra coisa que não seja, afinal, nesta língua que falamos, ainda que com um pouco mais de gerúndio que o habitual. Irá isso impedir-nos de admirar versos como estes: “o esforço para ser sábio/é como um adulto tentando com muita perícia e concentração imitar / um desenho de criança”?

Francisco José Viegas optou por não procurar traço comum, de geração, de tendência ou de movimento, nesta centena e tal de poemas, 25 dos quais inéditos. Na introdução, enfatiza a “diversidade de vozes” e defende a ideia da poesia de hoje como “meio atomizado e individualizado” que enquanto tal se deve respeitar. A antologia será uma “mostra” de indivíduos e nada mais, ficando para o leitor qualquer outra conexão de sentido. Uma dessas conexões salta, porém, à vista: o pior que um leitor poderia fazer seria procurar aqui poemas que façam do Brasil o seu tema ou o seu pretexto. Mesmo o rasto da diferença linguística é pouco sensível no idioma poético destes dezoito escritores. Se uma ideia do século XX quis que poesia no Brasil fosse poesia do Brasil, dessa herança já não sobra legatário.

Isso não bastará para definir uma geração, mas basta para situar uma condição: a mesma de todos os que escrevendo são, no mínimo, leitores poliglotas globalizados, ligados à sua língua pela mediação de códigos que diariamente traduzem e decifram. Ou não conseguem decifrar. Um poema de Annita Costa Malufe (nascida em 1975, tem vários livros editados na chancela 7Letras) diz, desde o título que cita Clarice Lispector — “O que falo nunca é o que falo” —, a experiência dessa nova cacofonia de onde o poema também nasce sem poder designar o que comunica nem indicar a quem o comunica: “o que falo nunca é o que falo/e sim outra coisa ouve-me ouve-me / daí deste silêncio deste longe longe / a primeira vez que ouvi foi isto longe”. Igualmente em Laura Assis, nascida em 1985, podemos ler o compromisso do poema com o segredo que percorre o próprio trajecto das palavras e que devolve a língua, qualquer língua, ao estado opaco e esquivo de coisa nunca dominada; isto é, o laço reiterado entre o poético e “essa matéria / invisível / inventando desvios / nas palavras / que você ainda / não aprendeu / a dizer.” Noutro poema, Laura Assis expõe a consequência dessa sabedoria supracultural e supralinguística para as próprias pretensões que fundaram as mais altas ambições da poesia moderna: “Talvez ler / o livro do mundo / seja também / saber perdê-lo.”

Do livro do mundo que nunca se queria perder fazia parte aquele mapa que identificava e atribuía, a cada um, a nação a que pertencia, de onde vinha e a que deveria sempre regressar. Aqui, um tal mapa é tão inútil como aquele táxi que, num poema de Alice Sant’Anna (nasceu em 1988 e o seu livro mais recente, editado em 2016, chama-se Pé do ouvido), “não tem serventia/se não puder tomar o caminho que leva / ao ponto mais alto / de onde se vê a curvatura da terra”. Poesia à escala da terra não é, porém, necessariamente descida ao fundamento ou celebração de qualquer humanismo festivo. Ana Guadalupe, no inédito Allan Kardec, mostra-se mais sensível à rotina e à chatice quotidiana, imaginando-as com leveza bem-humorada de um ponto de vista pseudo-espírita: “espírito que observa este mundo / do sofá empoeirado da dimensão paralela / que dia chato / e longo / deve ser o seu / que programação / repetida / preparamos / este ano // são tantas cenas de ronco e banho”. O segundo livro desta poeta nascida em Londrina, em 1985, traz no título — Não conheço ninguém que não seja artista (editora Confeitaria, 2015) — a ironia realista que a carateriza e que mais se agrava quanto este é, afinal, um livro de artista feito em parceria com a fotógrafa Camila Svenson. Dois terços da poesia representada nesta antologia são escritos por mulheres. Nem isto é insignificante do ponto de vista histórico, nem deixa de pesar numa enunciação sexualizada que sobressai regularmente até ao poema Assinatura, de Tatiana Pequeno (“a urna avermelhada que trago/por dentro da costura deixa / aberta a poça que me sai de / baixo e o ventre é de onde partem os naufrágios quando / mudas as viagens trazem o mar”, etc.). Citando mais um título — o do primeiro livro de Maria Rezende —, há aqui um “Substantivo feminino” a insinuar-se no futuro cânone da língua. (O Brasil poético vai, dir-se-ia, sabotando o actual Brasil político.) Nada de mais: cânone poético, se existe, não tem dono nem teve nunca. Como escreve Diego Callazans (Ilhéus, 1982), “não sou senhor sequer / do corpo que me veste”, dístico pseudo-platónico que aponta à minoria masculina um espírito sem pretensão de soberania. Em poesia, isso conta: encontrar para o “homem” um nome que não pese.

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