Alemanha: como foi possível um militar com ideias racistas fazer-se passar por refugiado?

O tenente Franco A. escreveu uma tese racista, mas as autoridades militares alemãs fizeram-lhe apenas um aviso.

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A ministra da Defesa, Ursula von der Leyen, esteve esta quarta-feira no quartel do tenente Franco A, perto de Estrasburgo VINCENT KESSLER/Reuters

Uma sucessão de erros crassos, uma tendência para desvalorizar atitudes racistas nas Forças Armadas, ou uma teia de cumplicidades maior? O que terá acontecido para que fosse possível que um militar que fez uma tese de mestrado que era um panfleto racista se mantivesse nas Forças Armadas? E como foi possível que o mesmo militar se registasse como refugiado numa localidade a três horas de distância da sua base, recebesse subsídios sociais, e vivesse esta vida dupla durante mais de um ano?

Depois de ter sido detido há uma semana, quase todos os dias a imprensa descobre mais uma informação sobre o militar identificado como Franco A. de acordo com a lei alemã (que por razões de privacidade não identifica suspeitos em casos judiciais).

Tudo começou numa casa de banho do aeroporto internacional de Viena, onde os serviços de limpeza descobriram uma arma num esconderijo numa casa de banho. Esta foi equipado com um sistema de detecção, e quando alguém a foi buscar, este informou a polícia austríaca, que deteve o suspeito.

Tiradas as impressões digitais, verificaram tratar-se de alguém registado na Alemanha como refugiado, o sírio “David Benjamin”. Mas só depois da investigação se percebeu que aquela pessoa era um militar alemão, Franco A., estacionado numa equipa franco-alemã perto de Estrasburgo. 

Suspeita-se de que planeava ataques contra refugiados e figuras de esquerda, e que tivesse a ideia de que as impressões digitais fizessem com que a culpa recaísse sobre um refugiado.

O caso provocou inúmeras questões, primeiro, sobre como foi possível que uma pessoa que não falava árabe fosse reconhecido como refugiado sírio na Alemanha (“David Benjamin” disse ser vendedor de frutas em Damasco, e vir de uma família francesa), como foi possível ter alojamento num abrigo para refugiados onde raramente dormia, e nunca ter levantado suspeitas suficientes para que o caso fosse analisado com mais cuidado.

As autoridades dizem que houve enormes falhas e que estas foram potenciadas pela altura em que o militar se registou, quando a Alemanha recebeu cerca de 800 mil refugiados, em 2015. 

A segunda questão tem a ver com as Forças Armadas alemãs e um possível problema de complacência com atitudes de extrema-direita no Exército. A revista Der Spiegel e o jornal Die Welt mencionavam uma tese de mestrado de Franco A. na academia militar francesa de Saint Cyr, que foi avaliada pelo responsável francês como defendendo ideias incompatíveis com uma democracia liberal. O estudante foi chumbado e se fosse francês, defendeu o examinador, seria expulso. A informação foi passada ao Exército alemão.

Do lado alemão, foi pedida uma avaliação do trabalho de Franco A. a um historiador. Este descreveu a tese como “um apelo a uma mudança política” baseado em conceitos racistas e ideias preconceituosas (a dada altura, o autor condenava mesmo o programa Erasmus por promover a mistura de culturas de jovens dentro da Europa). O historiador declarou o trabalho “perigoso” e escreveu ao Exército que gostaria muito de saber as consequências do caso.

Mas os responsáveis alemães falaram com o militar e este disse não ter qualquer motivação racista, ter feito o trabalho com uma grande pressão de tempo e sem qualquer apoio académico, disponibilizando-se para fazer uma nova tese. Recebeu apenas um aviso, e os serviços de contra-informação do Exército, que costumam investigar este tipo de casos, não foram sequer informados. 

A ministra da Defesa, Ursula von der Leyen (da CDU, o partido da chanceler, Angela Merkel), disse que poderia ter havido um problema de “atitude” e “liderança” no Exército, ao que os militares responderam que a liderança vem da ministra. Von der Leyen cancelou uma visita aos Estados Unidos marcada para esta quarta-feira para se dedicar ao caso e o Governo prometeu “ir ao fundo” da questão.

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