Esta sexta-feira, no São Luiz, come-se o bolo do futuro

O Projecto P!, que recorda os 100 anos da primeira conferência futurista por Almada Negreiros, encerra com uma Festa-futurista-e-tudo inspirada pelas ideias da nova cozinha preconizada por Filipo Marinetti.

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Jantares futuristas, anos 30 dr
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Jantares futuristas, anos 30 dr
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Marinetti defendia o cruzamento da cozinha com as outras artes dr
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O restaurante Santopalato dr
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O livro La Cucina Futurista, de Marinetti dr

O que será a cozinha do futuro? Depende do momento em que nos encontramos, claro. Quando o poeta e escritor italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) quis pensar a “cozinha futurista”, em 1931, o futuro era uma coisa. Hoje, quando a chef pasteleira Andreia Moutinho e as cake designers Isabel Costa e Cristiana Ribeiro, da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, se propõem criar um bolo do futuro, este é já uma coisa diferente.

O desafio foi lançado pelo Projecto P!, que quis festejar os 100 anos da primeira conferência futurista de Almada Negreiros (1893-1970) com uma série de iniciativas em Lisboa. O ponto final das comemorações é sexta-feira, às 22h, com uma Festa-futurista-e-tudo no Teatro Municipal São Luiz. Para além de vários cocktails futuristas, haverá ainda o tal bolo do futuro, tal como o imaginamos em 2017.

Para a festa de encerramento de uma semana que visou promover “um programa de pensamento crítico e de curadoria” em torno da questão da performance na esfera pública, os curadores, Ana Pais, Pedro Rocha e Levina Valentim, partiram da obra La Cucina Futurista, de Marinetti para pensar (também) a comida. E o que dizem os futuristas sobre o que comemos? Um dos pontos mais marcantes do livro é a crítica da pastasciutta, ou seja, da massa. Segundo Marinetti, essa “absurda religião gastronómica italiana”, que provoca em quem a come “fraqueza, pessimismo, inactividade nostálgica e neutralismo”, devia ser abolida e substituída pelo arroz. Havia nesta ideia, além da crença na capacidade da cozinha para transformar o indivíduo e a sociedade, uma preocupação patriótica, já que assim, argumentava o autor, a Itália libertar-se-ia da dependência do trigo importado e poderia desenvolver a indústria do arroz – sendo este mais ligado ao Norte, enquanto o hábito de comer massa era mais popular no Sul.

Mas a cozinha futurista tinha vários outros princípios. A ambição era chegar à “refeição perfeita” e esta passava, entre várias coisas, por: 1) “uma harmonia original da mesa (cristais, baixelas, decoração) com os sabores e cores das iguarias”; 2) “a originalidade absoluta das iguarias”. Outros pontos preconizados eram a “abolição da eloquência e da política à mesa” e o cruzamento da gastronomia com outras artes, como a música, que podia ser tocada “entre iguarias para não distrair a sensibilidade da língua e do palato”, ou a “arte dos perfumes”, destinada a “favorecer a degustação”.

Todos os sentidos

Os futuristas não se limitaram à teoria. Surgiram, na época, muitas receitas, como a “carneplástico”, prato criado pelo pintor futurista Fillia com o objectivo de interpretar as paisagens italianas, e que consistia numa grande almôndega cilíndrica coberta por mel, colocada sobre um anel de linguiça e acompanhada por três esferas de frango. E surgiu um restaurante, a Taverna Santopalato, em Turim, templo gastronómico dos futuristas, palco de todas as experimentações.

Apesar do entusiasmo dos futuristas, o projecto Santopalato não criou consenso e, ao fim de alguns anos, as dificuldades económicas levaram ao seu encerramento. No entanto, uma das constatações evidentes hoje é que vários destes princípios, nomeadamente o do cruzamento entre artes, foram mais tarde aplicados quer na Nouvelle Cuisine quer na cozinha molecular. De certa forma, o futuro preconizado por Marinetti cumpriu-se, o que torna mais difícil o desafio lançado pelo projecto P! a Andreia Moutinho, Isabel Costa e Cristiana Ribeiro.

“Foi-lhes dada toda a liberdade para fazerem a proposta que entendessem”, explica a curadora Ana Pais. “Os próprios futuristas não impõem limites, tudo pode ser inspiração para novas criações.” Deve, contudo, partir-se do “princípio modernista de fundir a arte com a vida” e, nessa lógica, “criar arte que pode ser comida”. É também importante convocar todos os sentidos e, portanto, dar um especial relevo à apresentação.

Andreia Moutinho garante que no bolo que vai ser apresentado esta sexta-feira “o lado visual será muito importante”. Mas o bolo do futuro não pode ter apenas um impacto estético, tem de responder a outras preocupações. “Como é que se faz uma coisa nova? Não sabemos ainda o que é o novo”, interroga-se a chef pasteleira. Sabem, no entanto, que “há uma tendência enorme para usar cada vez mais legumes e sementes e menos açúcar”. O bolo do futuro seguirá esse caminho. Além de outro, sublinha Andreia: o da “democratização da alta cozinha”. E será, naturalmente, acompanhado por cocktails futuristas. 

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