Às vezes, quando dizemos “tu” isso quer dizer “eu”

Para lidar com experiências negativas ou para falar de normas e regras, as pessoas optam por usar a palavra “tu” em vez do “eu”. É um método de distanciamento eficaz, conclui um estudo publicado na revista Science.

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Reuters/NAVESH CHITRAKAR

“Às vezes perdes, às vezes ganhas”, “quando estás zangado podes fazer ou dizer coisas de que te podes vir a arrepender”, “quando dás um passo atrás e te acalmas, consegues ver as coisas com uma perspectiva diferente”, “o orgulho pode prejudicar-te”. Estes são alguns dos exemplos usados num estudo, publicado esta sexta-feira na revista Science, que demonstra que o recurso ao “tu” no relato de uma experiência negativa pode ser uma importante ferramenta linguística que nos ajuda a distanciar e a lidar melhor com essa situação. É um “tu” genérico e impessoal, que também usamos mais quando falamos de normas e regras.

Os espectadores assíduos de futebol sabem que há algumas pessoas que se referem a si próprias na terceira pessoa do singular. Usam o “ele” – por vezes recorrendo mesmo ao seu nome próprio – em vez do “eu”. É uma estratégia de comunicação que pode servir para dar uma sensação de distanciamento mas que, na verdade, não sabemos bem com que propósito é usada. O recurso ao “tu” em vez do “eu” será muito mais comum e, no entanto, é uma estratégia que passa muito mais despercebida. Muitas vezes, sem o percebermos, usamos o pronome “tu” não para nos referirmos ao outro mas para lidarmos com uma situação negativa pessoal, atribuindo-lhe um significado, concluiu uma equipa de investigadores do Departamento de Psicologia da Universidade do Michigan (EUA). O estudo sobre o recurso ao “tu genérico”, na língua inglesa, envolveu várias experiências com 2500 pessoas.

Ariana Orvell, uma das autoras do artigo publicado na Science, esclarece ao PÚBLICO que as hipóteses formuladas nesta investigação são para sobre o Inglês e “não foram testadas” noutras línguas. Porém, a investigadora nota que esperaria obter “resultados semelhantes” nas línguas que também utilizam um “tu genérico" se fossem feitas as mesmas experiências. Ora, esse será o caso do português, ainda que no Brasil este “tu genérico” tenha de ser substituído pelo “você genérico”.

 No estudo, vários grupos de participantes foram submetidos a testes diferentes. Uma primeira ronda de testes serviu para demonstrar que o “tu” é mais usado para expressar normas e regras da vida quotidiana e o “eu” é o eleito quando se fala de preferências. Na segunda ronda de testes, os participantes foram divididos em três grupos e convidados a escrever um texto: a um grupo foi pedido que escrevessem sobre uma situação pessoal negativa atribuindo-lhe um significado; um segundo grupo devia apenas escrever sobre uma situação negativa (sem mais); e um terceiro grupo tinha de relatar uma situação neutra.

Os resultados: 46% das pessoas no primeiro grupo (que tinha de atribuir um significado) usou o “tu genérico”, o que só se verificou em 10% dos participantes no segundo grupo e em 3% dos indivíduos que descreveram uma situação neutra. “O recurso ao “tu genérico” quando estamos a falar de uma experiência negativa permite normalizar essa experiência, estendendo-a além do “eu””, refere Ariana Orvell, concluindo que “desta forma, um simples dispositivo linguístico serve uma poderosa função de criação de significado”.

Mas será que quando usamos o “nós” não estamos a fazer a mesma coisa? Será que não é a mesma coisa usar o “tu” ou dizer que “às vezes perdemos, às vezes ganhamos”? Não, responde a investigadora. “Certamente que podíamos substituir ‘tu’ por ‘nós’ em algumas das afirmações de exemplo que fornecemos no artigo, mas achamos que, quando estamos num contexto de reflectir sobre experiências negativas, esse pronome não teria o mesmo efeito que o ‘tu”, explica. Porquê? “O ‘tu genérico’ fornece a distância necessária para a reflexão e, portanto, promove a criação de significado, enquanto, por outro lado, o ‘nós’ é colectivo, inclui-nos, e, portanto, não consegue promover a distância psicológica”. Além disso, Ariana Orvell nota ainda que os resultados das experiências mostram que as pessoas preferem usar mais o “tu” do que o “nós”. Pelo menos, em Inglês.

O trabalho dá especial importância à função do “tu” na atribuição de significado perante uma experiência negativa. E as boas experiências? O “tu” não serve? “Também fizemos um estudo olhando para esse lado positivo”, refere a investigadora, acrescentando que “como esperado, percebemos que, se pedirmos às pessoas para reflectir sobre as lições que podem aprender com uma experiência positiva, as respostas revelam um uso do ‘tu genérico’ semelhante ao que verificámos nos relatos sobre acontecimentos negativos com um significado”.

 

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