"Os meus pais estão separados, mas eu continuo a ser filho de ambos"

Um novo manual para ajudar a proteger as crianças do "beco sem saída" que é o conflito parental foi apresentado nesta segunda-feira em Lisboa pelo Instituto da Segurança Social. É dirigido a profissionais, pais, crianças e intervenientes directos nos processos.

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Filipe Arruda

Quando uma criança, no centro de uma disputa entre os pais, tem a oportunidade de ser ouvida, muitas vezes dirá: “Os meus pais estão separados, mas eu continuo a ser filho de ambos”; “gosto dos dois de igual modo”; “quero sentir-me amado pelos dois”. E se puder deixar um conselho a um e a outro será, por exemplo: “Conversem sempre e não me usem como mensageiro” de dúvidas sobre os tempos de férias, a hora extra que o pai gostaria de passar no fim-de-semana ou a data em que vai pagar a pensão de alimentos.

Estes testemunhos de crianças foram relatados por Laura Teles, do Departamento de Desenvolvimento Social do Instituto de Segurança Social (ISS), na apresentação que fez de dois manuais produzidos para responder às necessidades criadas pelas alterações legislativas introduzidas em 2015 no Regime Geral Tutelar Cível: o Manual da Audição da Criança e o Manual de Audição Técnica Especializada. Recorde-se que, em 2015, a lei reforçou a necessidade de ouvir as crianças neste tipo de processos em tribunal.

Para o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José Vieira da Silva, presente na apresentação, nesta segunda-feira, em Lisboa, estes testemunhos são um breve resumo de uma realidade de "dimensão muito elevada", "um problema pesado da nossa sociedade", com “dezenas de milhares de acções solicitadas" ao ISS todos os anos.

Ambos os manuais foram organizados pelo ISS, que também prevê lançar um outro, semelhante, para os casos de promoção e protecção de crianças em risco. “A criança quer de facto ser ouvida” pela entidade que vai decidir o seu futuro, “mas quer ser bem ouvida”, ressalvou Paulo Guerra, juiz desembargador e director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários (CEJ).

Responsabilidade e liberdade

O sentimento da criança de estar a ser colocada num conflito de lealdade existe, e pode ser ampliado se for ouvida em tribunal num processo tutelar cível (ou outro, um processo-crime, por exemplo, se for vítima), referiu Marta Braz, do Núcleo de Infância e Juventude do Centro Distrital de Setúbal do (ISS), uma das oradoras do seminário que reuniu magistrados, responsáveis da Segurança Social e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, juiz Armando Leandro, o ministro Vieira da Silva, que participou na abertura, e a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, presente na sessão de encerramento.

“A criança tem uma relação afectiva com aqueles pais" e se, por um lado, "tem medo de magoar um deles", por outro, o processo "pode ser muito libertador", realçou Marta Braz. Porque "provavelmente vai ser ouvida pela primeira vez sobre o que pensa, sobre o facto de sentir que está a magoar os pais", explicou. A audição é um direito da criança reforçado pelas alterações legislativas recentes. Mas esse direito a ser ouvida pode também ser sentido como um peso indesejado, e também isso tem de ser tido em conta no acompanhamento técnico que se faz durante a preparação da criança para a audição frente a um juiz, conclui Marta Braz.

Na maior parte dos casos, não é possível fazer o acompanhamento logo após a audição, por indisponibilidade de técnicos, disse ainda a responsável. E o acompanhamento no médio e longo prazo tem de ser assegurado pela família.

Em declarações à agência Lusa, Paulo Guerra explicou que os manuais agora apresentados serão instrumentos de trabalho diário dos técnicos, permitindo um comportamento "estandardizado" a nível nacional.

Criar pontes em conflitos "cristalizados"

À margem do encontro, Sofia Borges Pereira, vogal do Conselho Directivo do ISS, não quis comentar, nesta ocasião, as recentes polémicas sobre a actuação das equipas técnicas de assessoria aos tribunais, que produzem relatórios que são, muitas vezes, determinantes para as decisões de um juiz de atribuir a guarda da criança a um pai ou a uma mãe.

O ISS tem cerca de 420 técnicos na assessoria aos tribunais, disse ao PÚBLICO Ana Paula Alves, directora da Unidade de Infância e Juventude do Instituto de Segurança Social, que explicou o contributo do Manual de Audição Técnica Especializada (ATE). "A audição técnica especializada traz uma possibilidade, já em fase judicial, de trabalharmos na facilitação de consensos, de pontes entre dois pais em conflito, já muitas vezes cristalizado. Nós apanhamos estes pais, muitas vezes, já em fim de linha”, descreve.

"A justiça vai devolver aos pais a responsabilidade de encontrar a solução e de desenvolver formas de comunicar”, explicou durante o seminário Ângela Lopes, do Núcleo de Infância e Juventude do Centro Distrital do Porto. “É dito aos pais: ‘Vocês vão decidir qual é o tipo de pai que vão ser e qual é o projecto de relação que vão ter no futuro.” Idealmente vai ser promovida “uma dinâmica de comunicação construtiva” que em muitos casos não existia porque as pessoas em conflito sentem, muitas vezes, que estão “num beco sem saída”.

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