O disparate é livre, mas para quê abusar?

Terá Canavilhas reparado que Portugal é um país soberano há séculos? Por favor: antes de falar, leia. Leia muito. Informe-se.

Uma nota prévia: pessoalmente, nada me move contra Gabriela Canavilhas. Cumprimentamo-nos cordialmente. Mas quando ela fala, ou escreve, sobre o Acordo Ortográfico (AO), e ainda por cima o faz em nome do PS, raia o inominável. Vejamos então o que a ex-ministra escreveu na edição de 17 de Fevereiro do Acção Socialista (assim mesmo, com a temível consoante muda intacta em "aCção"). "Sendo a língua uma expressão de tradições, de criatividade e de inovação, é natural que haja palavras diferentes em todos os países lusófonos para designar coisas iguais. E ainda bem. Por isso o Português é tão rico. Mas a divergência da grafia — a questão ortográfica — precisa, na minha opinião, de ser controlada por determinação política, sob pena de uma fragmentação irreversível do português." Precisa de ser controlada? Ela explica como: "O PS confia nas instituições académicas, às quais compete dar corpo científico às determinações políticas."

Mas como dar corpo a decisões de gente que neste caso raramente sabe do que fala? É bom lembrar que o PS, em matéria de ortografia, sendo hoje impenetrável a qualquer decisão racional, votou dividido em 4 de Junho de 1991, quando a proposta de resolução que aprovou o AO (sem sequer o discutir) foi submetida ao plenário da Assembleia da República. Canavilhas acusa, no seu texto, o PSD de falta de memória por andar a pôr em causa o AO, mas o PS também anda bastante desmemoriado. Porque, nesse dito dia, 16 deputados seus votaram contra o AO, ao lado dos deputados independentes Helena Roseta, Jorge Lemos e José Magalhães, tendo votado a favor o PSD, o CDS, o PRD e 12 deputados do PS (número inferior ao dos que votaram contra). O PCP absteve-se. O que se passa, hoje, é que muitos dos que abriram os braços cegamente ao AO já conseguem olhar para ele e para os seus efeitos com frieza. Daí as críticas, as sugestões de alteração — ou até a rejeição pura e simples, que muita gente ainda mantém convictamente.

Mas julgam que isso escapa a Canavilhas? De modo algum! "O PS defende o fortalecimento da Língua Portuguesa para lhe proporcionar maior valor económico, garantindo a sua unidade cultural essencial", escreve. Isto, que não quer dizer absolutamente nada e já é ridículo repetir, vem com um bónus: "O texto do Acordo prevê a elaboração de um Vocabulário Ortográfico Comum. A versão final será apresentada, finalmente, no próximo mês de maio [sic]." Erro crasso no tempo verbal. Não prevê, previa; desde 1990. E sabem para quando? 1 de Janeiro de 1993! Passaram muitos anos e inúmeras asneiras, sem que os responsáveis por tal dislate corassem de vergonha. Podiam aprender com o recém-aniversariante PÚBLICO (27 anos), que falhou a saída a 2 de Janeiro de 1990 e não anunciou nova data até estar certo de que não falharia outra vez. Mas ao menos façam-nos um favor: calem-se com datas. Têm-nas errado à exaustão, e anedoticamente!

Voltemos ao início: "a questão ortográfica precisa de ser controlada por determinação política". Ora vejam algumas pérolas que tal "determinação" incentivou: "pato de estabilidade", "fato", "fatual", "fatualmente", "frição", "fricional", "fricionar", "inteleto", "inteletual", "latose", "otogenária", "setuagenários", "espetável", "espetadores", "contatos", "conceção [do visto]", "conceção [da autorização]", etc. Há mais. Muito mais. A colheita, abundante e diária, é dos Tradutores contra o Acordo Ortográfico e tem todas as fontes e datas assinaladas, que vão do Governo a jornais, câmaras, empresas, universidades, fundações. Um delírio geral. Mas não há problema. Os políticos tratam de tudo, não é? Não podem é mudar nada. Canavilhas avisou, solene, na rádio (Antena 2): “O Governo brasileiro está solidamente comprometido com o acordo ortográfico, não cogita promover retrocessos e não admite a reabertura de negociações sobre o seu texto.” (E citou o embaixador do Brasil, Mário Vilalva.) O Brasil não admite, ouviram?! Terá Canavilhas reparado que Portugal é um país soberano há séculos? Por favor: antes de falar, leia. Leia muito. Informe-se. O disparate é livre, mas em excesso cansa. Esgota-nos a paciência.

 

P.S.: Nalguns comentários a esta crónica (que pessoalmente agradeço) sugere-se que os exemplos de erros apresentados no último parágrafo são falsos. Antes fossem. São, infelizmente, verdadeiros e podem ser consultados (e confirmados, um a um, com as respectivas fontes e datas, que não caberiam no espaço desta crónica) no Facebook dos Tradutores contra o Acordo Ortográfico. Também se sugere que tais erros não podem ser imputados ao acordo ortográfico (AO). Discordo. Há cinco anos atrás haveria muitos erros de escrita, mas nenhum deste género. A insana "caça às consoantes" ditas mudas, as duplas grafias e as facultatividades permitidas pelo AO de 1990 são directamente responsáveis pelo caos ortográfico que por aí reina e não dá sinais de abrandar. E tomem nota, por favor: se nada mudar, os próximos capítulos serão piores.

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