O regresso do proteccionismo

Os “jogos sem fronteiras”, iniciados no final dos anos 1960, captavam o espírito da época. Hoje estão em curso jogos de sentido contrário. O proteccionismo comercial é uma das facetas da ideia de um controlo efectivo das fronteiras nacionais.

1. Há alguns anos atrás a revista britânica The Economist intitulava a sua capa The Return of Economic Nationalism (O Regresso do Nacionalismo Económico, 9/02/2009). Uma imagem particularmente sugestiva ilustrava a revista: a do nacionalismo económico a ressurgir como um zombie, regressando ao mundo dos vivos oriundo do passado dos anos 1930. Na altura, o contexto era o agravamento da crise financeira e económica iniciada no Verão de 2008, com a falência do banco de investimento norte-americano Lehman Brothers. Em 2010, num tom similar, Guido Mantega (o então Ministro das Finanças do Brasil), denunciava a existência uma guerra cambial. Segundo Mantega, países como o Japão ou os EUA, ao deixarem deliberadamente desvalorizar as suas divisas, estavam a tirar mercados a outras economias com bom desempenho. A crítica foi corroborada por Strauss-Kahn (o então director-geral do FMI). Considerou que o facto de vários países usarem a moeda como uma arma na competição comercial — ou seja, como um instrumento para aumentar artificialmente a competitividade nacional à custa dos concorrentes estrangeiros —, era negativo para a economia global.

2. A memória da Grande Depressão dos anos 1930, e do que muitos consideram ser a responsabilidade do proteccionismo em transformar uma recessão numa depressão, reemerge ciclicamente. Frases como beggar-thy-neighbour (empobrecer o vizinho) são frequentemente invocadas para alertar contra os perigos do proteccionismo comercial. Na origem está o Tariff Act de 1930, também conhecido como Lei Smoot-Hawley — uma legislação proposta pelos senadores Reed Smoot e Willis C. Hawley. A situação ocorreu durante a presidência do republicano Herbert Hoover (1929-1933). A Lei Smoot-Hawley levou a aumento médio 20% dos direitos aduaneiros, de forma unilateral, sobre produtos importados. O objectivo era atenuar os efeitos da crise iniciada em 1929, com o crash da bolsa de Nova Iorque, que se tinha agravado. Pretendia proteger as empresas e agricultores norte-americanos da concorrência estrangeira. Naturalmente que provocou reacções e retaliações, com outros países a porem em prática similares medidas, originando guerras comerciais, de maior ou menor intensidade. Num espaço de dois anos, cerca de duas dezenas de países implementaram idênticas políticas proteccionistas, reduzindo drasticamente os fluxos de comércio internacional.

3. A revista alemã Der Spiegel ecoava recentemente similares preocupações às da Economist de 2009, bem evidenciadas num artigo intitulado The New Age of Protectionism. Trump’s Attack on Germany and the Global Economy (A Nova Era do Proteccionismo. O Ataque de Trump à Alemanha e à Economia Global). Agora a preocupação resulta da chegada ao poder nos EUA de um presidente com um programa de nacionalismo económico, abertamente desfavorável aos acordos de comércio livre multilaterais. A Parceria Transpacífico (Trans-Pacific Partnership — TPP), negociada durante a presidência de Barack Obama, foi uma primeira vítima, com a recusa da sua ratificação. Também as negociações UE-EUA para uma Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento — TTIP na sigla em língua inglesa —, ficaram igualmente fora da agenda política. Ao mesmo tempo, fabricantes de automóveis alemães (BMW, Daimler, Volkswagen, etc.), foram ameaçados com tarifas punitivas de 35%, por investirem em fábricas no México para vender para o mercado dos EUA. Para a Der Spiegel, as consequências de um conflito comercial com os EUA seriam muito negativas para a Alemanha, especialmente num ano de eleições legislativas. Tal como para a Economist, as políticas anti-globalização de Trump, se postas em prática, acabarão por levar a uma guerra comercial global que afectará as multinacionais, a inovação empresarial e podem até levar a economia mundial a uma recessão.

4. Olhando para o passado a existência de correntes pró-proteccionismo não é uma anomalia histórica, nem data apenas dos anos 1930, com a Lei Smoot-Hawley. Em vários momentos anteriores — sobretudo num período em que os EUA e a Alemanha eram ainda potências económicas e industriais embrionárias —, o proteccionismo foi frequentemente a abordagem preferida. O norte-americano Alexander Hamilton com o seu Relatório sobre as Indústrias ( 1791) e o alemão Friedrich List através de O Sistema Nacional da Economia Política (1841), estão entre os seus maiores proponentes. Bem ou mal, consoante as perspectivas, na lógica proteccionista o político não se subordina ao económico. Nesta óptica, dispor da capacidade de criar riqueza a nível nacional é mais importante do que a riqueza em si mesma. Assim, os argumentos a favor do proteccionismo são tipicamente os seguintes: manutenção do emprego e do rendimento nacional; protecção das indústrias nascentes, que, de outra forma, não se afirmariam; manutenção da autonomia nacional devido à necessidade de existirem indústrias estratégicas, por razões de autonomia e segurança; e atracção de investimento estrangeiro — sobretudo em países com grande dimensão geográfica e/ou populacional — obrigando as empresas estrangeiras, precisamente devido ao proteccionismo do mercado, a investirem no território nacional para acederem a este. Para os críticos, numa era de interdependências e globalização, estes argumentos são uma falácia passadista (e populista). Para os seus defensores, são os males da própria globalização que os justificam de novo.

5. Os “jogos sem fronteiras”, iniciados no final dos anos 1960, captavam o espírito da época (eram um programa da televisão feito a partir de uma ideia do general de Gaulle para a reaproximação franco-alemã). Hoje estão em curso jogos de sentido contrário. O proteccionismo comercial é uma das facetas da ideia de um controlo efectivo das fronteiras nacionais. O controlo dos fluxos migratórios é outra. Nos EUA, a construção de um muro na fronteira Sul com o México, exemplifica-a. Na União Europeia, para além dos muros feitos pela Hungria e outros, o espaço Schengen é alvo de fortes críticas. Para os mais cáusticos, é o principal responsável pelos fluxos migratórios indesejados. Esta visão representa uma inversão da tendência iniciada no pós-guerra. Na altura, o processo de integração europeia levou a uma progressiva abertura de fronteiras, às mercadorias e às pessoas. Hoje, o espírito da época vai no sentido de “jogos com fronteiras”. Está em curso uma confrontação política entre os que defendem a primazia do Estado-nação, com restrições ao comércio e fluxos migratórios, e os que se revêem num mundo de fronteiras abertas, entre povos europeus e ao exterior. Será este último o futuro, apesar da reacção proteccionista / nacionalista, ou foi apenas um fugaz momento histórico que está a terminar? As importantes eleições deste ano de 2017, na Holanda, França e Alemanha, vão ajudar a perceber para onde estamos a caminhar.

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