Danúbio do Pernambuco

As ideias dos derrotados de ontem ainda têm força que chegue para ganhar hoje e amanhã.

Começo por contar uma história que poderá estragar — apenas um pouco — a surpresa de uma das cenas do filme Stefan Zweig: Adeus, Europa que estreou ontem nas salas de cinema portuguesas. Se estiver decidido a vê-lo neste fim-de-semana, poderá querer voltar a esta crónica depois. Mas pode sempre ir ver o filme mesmo depois desta leitura, e deve até, que ele não perde por isso o muito interesse que tem.

A certa altura do seu exílio no Brasil, Zweig e a companheira atravessam um campo de cana-de-açúcar no Agreste nordestino, acompanhados por um guia que os leva a visitar um autarca da região, enquanto Zweig fica sempre para trás escrevinhando mais umas notas para um futuro livro. Chegados finalmente à Casa Grande onde estão o Prefeito, a mulher e alguns representantes da comunidade, ouvimos o típico discurso gongórico destas ocasiões, findo o qual o político local chama a atenção para a banda filarmónica que vai interpretar, diz ele, "uma música da terra deste famoso escritor, a Áustria!". A custo, resfolegando desafinadamente para os instrumentos de sopro, os músicos lá conseguem tirar da tubas e dos pífaros os primeiros acordes de qualquer coisa.

É o Danúbio Azul. A interpretação é, a todos os títulos, horrível. A música, para quem não gosta, já é delicodoce em extremo. E, no entanto, uma lágrima rola pelo rosto de Stefan Zweig abaixo.

Significa, acho eu, duas coisas. Saudades, é claro, pela ideia de um país como uma casa. Quem esteve fora sabe perfeitamente que não é a perfeição estética nem o bom gosto que nos fazem chorar; é, pelo contrário, a surpresa perante a nossa emoção com as coisas mais patéticas do nosso patriotismo. Em segundo lugar, talvez a gratidão sentida perante a generosidade de humanos do outro lado do mundo que se esforçam por assassinar uma música da nossa terra só pela vontade de nos consolar no exílio.

E nesse momento o filme encontra aquilo de que Zweig andava à procura: o sentimento de comunidade que une patriotismo e cosmopolitismo.

É bom lembrar que Zweig era então um homem derrotado. Um dos escritores mais famosos do mundo, vivendo com algum conforto e com vias de fuga garantidas, apesar da tragédia europeia da II Guerra Mundial, mas derrotado. Os seus livros proibidos, as suas ideias escarnecidas pelos ideólogos do nacional-populismo de então, tão oportunistas e gabarolas como os de hoje. O que estava a dar, proclamava-se, era o interesse da nação, a sua suprema conveniência em ser tão egoísta quanto necessário, a impiedosa primazia dos vencedores no inevitável conflito entre fortes e fracos. Nenhuma complacência, nenhuma lágrima pelo mundo de ontem de Zweig.

E no entanto as ideias de Stefan Zweig não tinham nada de irrealizável. Ele fala delas a certa altura no filme: uma Europa sem fronteiras, onde será possível viajar sem passaporte. Numa conferência dada em Estrasburgo, põe-se a sonhar com a utopia prática de um programa de intercâmbio entre estudantes de vários países. Qualquer delas uma banalidade dos nossos dias. Se ele não se tivesse suicidado em Petrópolis em 1942, não é de excluir que ainda tivesse chegado a dizer olá, e não adeus, a alguma dessas ideias em sua vida.

A memória de Zweig tem suscitado muito interesse nos nossos dias, desde a inspiração que deu para uma comédia como Grand Budapest Hotel até ao panorama contido e íntimo deste novo filme. É natural, dado os tempos que correm. E é importante ir ver este filme. Mas é essencial não sair de lá com a ideia de que está tudo perdido de novo. As ideias dos derrotados de ontem ainda têm força que chegue para ganhar hoje e amanhã.

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