"Era uma vez" um livro de estórias para conhecer e aprender com Lisboa

No prefácio de "Era uma vez Lisboa", o jornalista Luís Almeida Martins escreve que "a Lisboa dos turistas é mais uma selfie do que uma foto documental”. Na ânsia de que a cidade "conheça os seus", Luís Ribeiro conta 57 estórias da cidade que tantas vezes se abriu e fechou sobre si mesma.

“A buliçosa cidade dos romanos. A cruel cidade dos escravos. A abastada cidade ibérica. A cidade de todos, menos nossa. A cidade que quis mostrar Portugal ao mundo.” Todas estas cidades, que são a mesma, são estórias contadas no livro "Era uma vez Lisboa", onde Luís Ribeiro, jornalista da revista Visão, conta a história possível da capital em 280 páginas. Decorrem tantos séculos quantos este lugar se conhece.

Depois de ser Alis Ubbo, significado fenício para “porto seguro”, Lisboa foi Olisipo dos romanos e Al-Ushbuna moura, mudando de nome como mudava de mãos. Veio então o tal Afonso, filho de Henrique. “Aí a História recomeçaria. Reis pais e príncipes filhos lutariam por ela, reinos vizinhos e distantes cercaram-na, invadiram-na, tentaram vergá-la, a peste devastou-lhe as gentes, a própria terra tentou engoli-la.” Foi Lisboa dos três Filipes de Espanha, Lisbonne dos franceses de Bonaparte e Lisbon de William Beresford. Sobre ela, Luís Ribeiro seleccionou 57 estórias que traduziu e descodificou dos escritos de historiadores e dividiu em relatos de confrontos, tragédias e conspirações, em personalidades, vilões e heróis, lugares e paixões. Depois de “Histórias do Tejo”, editado em 2012, este é o segundo livro do jornalista.

Em Lisboa não é difícil falar do passado. “Quase que damos um pontapé numa pedra da calçada e sai de lá uma história." Havendo muitas pedras que se tenta enterrar, acredita. A do massacre aos judeus, em 1506, é uma dessas histórias. 

Portugal era então refúgio para 90 mil judeus depois da ordem de expulsão destes crentes, em 1492, pelos reis católicos espanhóis. Em 1497, D. Manuel via-se encostado à parede e ordenou a conversão dos judeus ao catolicismo. Instalara-se uma paz frágil. Em 1506, durante uma missa no domingo de Pascoela, alguém viu uma luz reflectida dentro da Igreja de São Domingos, junto ao Rossio. Para a maioria dos fiéis, era um sinal do fim da peste, da seca e da fome que vergavam a cidade. Houve quem questionasse "o sinal". Era um cristão-novo e a "insurreição" não caiu bem nos crentes. "Alguns homens de baixa condição arrastaram-no pelos cabelos para fora da igreja, e mataram-no e queimaram logo o corpo no Rossio", lê-se no livro. Varreram ruas e casas, torturaram e mataram indiscriminadamente, a não ser com uma condição: serem cristãos-novos. Cinquentas pessoas morreram nesse domingo. Na terça-feira, perdia-se a conta aos mortos: entre dois e quatro mil.

"Custa-nos compreender isto como custa aos alemães compreender o Holocausto", compara o jornalista. Em frente à Igreja de São Domingos existe um monumento com a estrela de David em homenagem "aos milhares de judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso" daqueles dias de 1506, lê-se na inscrição.

Por “acidente”, por não ser esse o critério do escritor, as histórias que escolheu descrevem uma espécie de ciclo: de uma cidade inclusiva desde os primeiros tempos, na linha da frente do cosmopolitismo e multiculturalidade, à cidade que se fecha, em vários momentos da história, sobre si própria.

Por ter sido habitada por fenícios, nos séculos XIV ou XIII antes de Cristo, vindos da actual Síria, o Líbano e Israel, por romanos, tribos celtibéricas, povos do norte, suevos e visigodos, e muçulmanos do norte de África, “etnicamente, somos uma mistura ecléctica, que de certa forma torna ridículo falar-se de uma raça portuguesa”, acredita. A Sé de Lisboa é exemplo edificado dessa mistura, erguida em cima de uma mesquita, que por sua vez estaria já nas ruínas de um templo romano.

"Ilha de Paz"

No livro, não raro as descrições de Lisboa fazem-se pelo caminho dos condenados à morte, entre a Prisão do Limoeiro e o Cais do Tojo da Boavista, junto ao Tejo, e as execuções no Rossio. A marcar estes locais, os seus vilões: de Francisco Matos Lobo, o último condenado à morte em Lisboa, por se "perder demasiado de amor", a Diogo Alves, acusado do assassinato de 70 pessoas no Aqueduto das Águas Livres.

D. João V, o Rei-Sol, Pina Manique e Egas Moniz têm também as vidas contadas “para que os lisboetas conheçam os seus”. De todas as personagens, é a Marquês de Pombal que se dedicam mais páginas. Do massacre dos Távora e o seu conhecido carácter déspota, aos feitos de estadista e reformador pragmático e visionário, Marquês de Pombal é para o jornalista uma personagem "apaixonante, com tanto de bom como de mau".

A recordar os tempos em que Portugal foi, uma vez mais, “uma ilha de Paz”, Luís Ribeiro destaca os anos da II Guerra Mundial em que o país, “tentando passar ao lado do conflito, não conseguiu.” A capital recebeu muitos refugiados que esperavam passagem para a América. Pelo menos, um deles não embarcou. Calouste Gulbenkian, “que na altura se dizia ser o homem mais rico do mundo”, decidiu ficar em Lisboa.

“Foram anos muito interessantes. Os refugiados ficavam pelos cafés e ruas de Lisboa e, de certa forma, mudaram também o tecido social da cidade. Era com estranheza e inveja simultâneas que se viam as mulheres mostrar os tornozelos e os fatos de banho.” Era a liberdade de costumes do centro da Europa que abria mentalidades.

Num dos prédios do Rossio, o Chave d’Ouro era a sala de jogos mais frequentada pelos refugiados judeus. Por isso, "estava pejada de espiões alemães e ingleses, que se espiavam mutuamente e por sua vez eram espiados pela polícia de Salazar." Esta é a última vez que o jornalista recorda Lisboa a ser tratada por outro nome: era a Casablanca 2 de que os pilotos ingleses falavam, que se dizia ser mais Casablanca que a própria cidade marroquina.

Onde existia este café estão hoje duas sapatarias. Mas Luís Ribeiro não é saudosista: “Sabemos que as cidades evoluem. Não podemos ser líricos e esperar que as coisas durem eternamente. Para isso temos a história.”

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