A primeira BoCA abre-se em Março com “artistas que interpelam o nosso tempo”

A bienal que de 17 de Março a 30 de Abril envolverá 38 instituições de Lisboa e Porto quer ser um lugar de excepção – o lugar de todos os desvios à habitual divisão sectária entre artes visuais e artes performativas.

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Shirtologie, de Jérôme Bel, serviu de teaser para a bienal que começa a 17 de Março DANIEL ROCHA

Não há BoCA como a primeira para fazer uma declaração de intenções: “é um lugar de excepção, sobretudo transitório”, que se faz de “artistas que interpelam o nosso tempo” e que tem na “essência a sinergia e transversalidade”. A BoCA – Biennial of Contemporary Arts, que cruzará artes cénicas e plásticas, performance e música em Lisboa e Porto já a partir de 17 Março, envolve 38 instituições e mais de 30 projectos, muitos dos quais em estreia. E quer “deixar entrar a diversidade”, como citou o seu director artístico e programador, John Romão, a partir de Pasolini.

“Estamos todos a operar desvios”, descreveu o actor, performer e encenador durante a extensa apresentação do programa que decorreu esta segunda-feira no Teatro Nacional D. Maria II. A bienal que nasce pela estranheza de Romão por não ver mais misturas entre os públicos das artes visuais e das artes performativas decorre até 30 de Abril numa longa lista de espaços de apresentação – são 25 instituições nacionais e quatro estrangeiras, dos teatros nacionais aos museus de Arte Antiga e do Chiado, do novo MAAT ao Centro Cultural de Belém, passando pela Casa da Música e pelos Maus Hábitos, até aos franceses Théâtre Nanterre-Amandiers e Festival d’Automne à Paris, aos quais se juntam os 11 co-produtores e parceiros de acolhimento portugueses, do Theatro Circo, em Braga, ao Teatro Viriato, em Viseu, do Fórum Eugénio de Almeida, em Évora, ao Museu de Faro.

Vinte anos depois da sua primeira apresentação em Portugal, Shirtologie (1997), do bailarino e coreógrafo francês Jérôme Bel, regressou, cada t-shirt envergada em palco intercalando a apresentação de uma bienal que John Romão diz trazer a Lisboa e Porto 20 projectos de co-produção em estreia mundial e outros 15 em estreia nacional.

Nesta edição inaugural, a BoCA vai ter como primeiros artistas em campo, muitos fora da sua zona de conforto e a trabalharem a expressão artística do vizinho conceptual – um dos objectivos é, disse John Romão, que as instituições participantes recebam "novos públicos” –, o encenador e dramatugo Rodrigo García a jogar pinball com Deus e o demónio no Museu Nacional de Arte Antiga depois de contemplar As Tentações de Santo Antão, de Bosch, a coreógrafa e bailarina Tânia Carvalho a levar os seus desenhos Toledo ao Palácio dos Viscondes de Balsemão e ao Teatro da Politécnica, ou Aram Bartholl a espalhar pens presas com cimento em locais públicos das duas cidades para podermos receber ou encher uma rede anónima de partilha de informação (Dead Drops, em locais a anunciar). Mas a BoCA terá também quatro artistas ou colectivos residentes e a dupla Musa Paradisiaca é um deles: vão montar uma Casa Animal, “um edifício nómada de ferro, desmontável, que pode albergar aquilo que lá se quiser mostrar” no Palácio Pombal. Por sua vez, a cineasta Salomé Lamas aceitou o “desagradável convite”, como brincou no D. Maria, para se lançar num território desconhecido, a sua primeira criação teatral com a paródia política Fatamorgana no Pequeno Auditório do CCB já a 12 e 13 de Abril, cruzando personagens como Caravaggio, Arafat ou o inevitável Donald Trump. O bailarino e coreógrafo francês François Chaignaud trabalhará, por seu turno, com a cravista Marie-Piere Brébant em Hildegarde, instalação-performance para o São Carlos que quer questionar “a relação com a espiritualidade”, e a artista plástica cubana Tania Bruguera vai encenar o Fim de Partida de Beckett no Mosteiro de São Bento da Vitória, acabada de oficializar a sua candidatura à presidência de Cuba como parte do seu trabalho artístico, como detalhou John Romão. Tanto Casa Animal quanto Fim de Partida são integralmente produzidas pela BoCA, bienal em que dominam as co-produções.

Na apresentação da bienal, Romão disse que ela “ocupa um lugar que estava à espera de ser descoberto”, considerando que não se sobrepõe ao trabalho nestas áreas que muitas das instituições agora suas parceiras já realizam – ao PÚBLICO, já depois do final de Shirtologie, explicava que quis “pensar qual é o lugar e a pertinência de uma bienal ou de um festival” hoje. Os teatros, crê, “cada vez mais têm uma programação mais festivaleira”, condensada, e o “festival já não tem o poder de há uns anos”. Por isso, a BoCA “não quer responder aos projectos que os artistas já têm em mente, mas [estimular] novas obras, pensadas a partir do diálogo com eles e com as instituições” associadas.

Entre a detalhada listagem da programação desta bienal surgem entradas pouco convencionais como o Campeonato Internacional de Fingerboard, ou a arte de brincar ao skate com escalas ao tamanho dos dedos. Há projectos que interpelam e provocam, como a ida dos artistas plásticos João Pedro Vale/Nuno Alexandre Ferreira ao circo com Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre ou a ladina performance musical dos artistas Von Calhau!, Tau-tau, no Teatro da Politécnica. Vhils (ou Alexandre Farto) pega na sua experiência biográfica para uma performance cénica sobre a evolução da cultura urbana nos últimos 40 anos, a dupla Tianzhuo Chen (chinês) e Aisha Devi (nepalesa-tibetana) junta-se aos Asian Dope Boys numa nova criação da sua electrónica intensa para o LUX/Frágil e Jan Martens vai digerir na dança o seu próprio retrato, o seu método de trabalho, o seu computador e a sua mente em Ode to the attempt (MAAT). O D. Maria vai também receber uma intervenção de José Maria Gusmão e Pedro Paiva, e o conhecido encenador Romeo Castellucci trará dois trabalhos – Ettica, Natura e Origine della Mente (D. Maria) e Julio Cesar (Porto), que terão durações curtas, duas exibições diárias e um número limitado de espectadores.

O evento, que John Romão concebeu ao longo de dois anos, tem como financiadores a Direcção-Geral das Artes (através do seu programa de apoios pontuais, que lhe atribuiu 30 mil euros), a Fundação Gulbenkian, a Câmara Municipal de Lisboa, várias embaixadas, os institutos alemão e francês, fundações e a Delta Q. As co-produções reflectem-se também em partilhas financeiras, como lembra John Romão ao PÚBLICO, e o orçamento global desta bienal (estrutura, programação, programa educativo) é de 420 mil euros, indicou o director artístico. 

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