“Quero ter o direito a partir”

A eutanásia e o suicídio assistido estão nesta quarta-feira em debate na AR. É apenas o início de uma discussão que divide a sociedade. Ana Paula Figueiredo é a favor da despenalização. Foi a morte do pai, as palavras que lhe disse e a carta que deixou que a fizeram abraçar a causa.

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Daniel Rocha

“Declaro por minha honra, de cidadão e de militar, aos senhores médicos e familiares, que é da minha inteira vontade que me provoquem uma morte sem dor ou sofrimento, sendo este o meu desejo, a minha alegria e a alegria dos vossos corações seguido de uma salva de palmas.”

A carta foi escrita em Outubro de 2007 pelo sargento-mor da Marinha, Joaquim Guedes Figueiredo. Tinha cancro nos ossos, e dores insuportáveis. Não só físicas – mas essas eram muitas. Tinha “dores de alma, dor de ver a família” ter enfrentar tudo com ele, é muita dor junta que “não se consegue perceber”, conta hoje a filha.

O pai pediu aos médicos ajuda para morrer, mas o apelo não foi cumprido. Não podia, por lei. Sem essa ajuda, o militar cumpriu o que disse sozinho, a 12 de Agosto de 2014, com um tiro à porta de uma esquadra e diante das câmaras de videovigilância.

A história tem sido contada pela filha. Ana Paula Figueiredo, 47 anos, tornou-se uma activista da causa, a favor da despenalização da morte assistida. Não tem sido uma luta fácil, há muita gente que não a entende e o tema, tão sensível, divide as opiniões. Mas ela já não tem dúvidas e, para que não as haja mesmo, diz esta frase, com uma voz calma e com uns olhos castanhos muito abertos: “Não estou a defender a morte, eu adoro viver. Vivo a vida com muita intensidade. Mas entendi e aceitei o que meu pai fez.”

Filha única, católica, professora de Matemática e com dois filhos, é uma das subscritoras da petição Direito a morrer com dignidade que vai estar nesta quarta-feira em debate na Assembleia da República e que pede a despenalização da morte assistida. Aliás, não é só subscritora, fez mesmo parte da coordenação da iniciativa, teve reuniões com os partidos. Foi só depois de o pai morrer, de recordar algumas frases enigmáticas que ouviu e de ter recebido um envelope com cartas, que percebeu que tinha uma missão para abraçar.

Uma das cartas, que não torna pública, é um “mapa” para a vida que o pai lhe deixou. São palavras de força, de orientação. Agarrou-se àquilo, andava com a carta na pasta, sempre que tinha um bocadinho livre, lia-a. O pai tinha-lhe dito que ia precisar da ajuda dela. Não queria que ela metesse baixa nos anos em que ele esteve doente, que interrompesse o trabalho de professora que tanto o orgulhava. Dizia-lhe que ia precisar da ajuda dela, mas noutra altura. Quando, ela acabaria por perceber. E Ana Paula Figueiredo percebeu.

Estava na praia com os filhos quando soube da morte do pai. Ninguém está preparado para ir reconhecer o corpo de um pai, para sair a correr e pôr os filhos no carro, sem saber o que lhes dizer, eles tinham na altura 14 e seis anos. Ninguém está preparado, nem ela que já tinha visto o pai tirar um revólver numa consulta. Viu-o pedir ajuda, para lhe aliviarem o sofrimento – os tratamentos e medicamentos não o estavam a conseguir –, ouviu-o também dizer que, caso não o ajudassem, ele mesmo o faria sozinho. E fez. Tinha 72 anos.

Ana Paula Figueiredo recorda o pai como alguém determinado, convicto, que lutou até ao fim, com esperança, que nunca falhou um tratamento, positivo, bem-humorado. Mas que chegou a uma altura e tomou uma decisão. “A pessoa está viva, mas não está a viver. Eu quero ter o direito a partir”, resume hoje a filha.

A discussão de um tema tão delicado não é, claro, pacífica. Nesta quarta-feira, às 12h30, e diante da escadaria da Assembleia da República, estará a manifestar-se um outro movimento cívico que se chama Stop Eutanásia. Já recolheu 14 mil assinaturas para a petição Toda a Vida tem Dignidade (também virá a ser discutida no Parlamento).

As contas na Assembleia

Para já, neste primeiro momento, nesta quarta-feira, o Parlamento debate a petição pelo Direito a morrer com dignidade. Tem 8690 assinaturas, entre as quais as dos deputados bloquistas José Manuel Pureza e Mariana Mortágua, da ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz (PSD), de Pacheco Pereira, da deputada socialista Isabel Moreira, do escritor Miguel Esteves Cardoso, dos músicos Sérgio Godinho e Jorge Palma, entre muitos outros. Pedem a despenalização da morte assistida, que consideram poder revestir-se de duas modalidades – ser o doente a auto-administrar o fármaco letal (suicídio medicamente assistido) ou ser administrado por outrém (eutanásia).

A discussão será curta – não ultrapassará os três minutos por intervenção – e servirá para preparar o caminho para mais tarde se discutirem os projectos já anunciados pelo Bloco de Esquerda e pelo PAN (Pessoas–Animais–Natureza) de despenalização da eutanásia e do suicídio assistido.

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Tanto o BE como o PAN prevêem que o pedido de morte assistida seja apresentado a um clínico escolhido pela pessoa e exigem também o parecer positivo de um médico especialista na área clínica da doença de que a pessoa é portadora. No caso do PAN exige-se ainda o parecer de um psiquiatra. Para o BE, o parecer deste especialista só é necessário se houver dúvidas sobre a liberdade e consciência do pedido.

Os dois projectos prevêem que “a morte assistida” de pessoas com doenças incuráveis e fatais – não abrange menores, nem pessoas com anomalia psíquica – possa ser em casa do doente ou num estabelecimento de saúde, consoante a escolha do paciente.

Quanto ao PS, não deverá apresentar qualquer proposta e os deputados terão liberdade para votar como bem entenderem. “Ainda não há maturidade suficiente dentro do nosso partido. Ainda não chegou a altura. Estamos a fazer o nosso caminho”, lembrou Maria Antónia Almeida Santos, uma das deputadas que apresentou uma moção sobre a despenalização ao seu partido que ainda não foi votada.

Também no PSD, que vai organizar a 9 de Fevereiro um colóquio intitulado Eutanásia/Suicídio assistido: dúvidas éticas, médicas e jurídicas, haverá liberdade de voto. Já o CDS é contra a despenalização. Mas, nesta terça-feira, a líder centrista não excluiu a hipótese de um referendo: “Essa é uma matéria que também ela merece um debate na sociedade portuguesa, mas eu não excluiria à partida essa hipótese.” A ideia não deverá ter, porém, pernas para andar – o Bloco, por exemplo, é assumidamente contra, argumentando que “direitos individuais não se referendam”. E mesmo do lado do Governo e do PS a ideia não merecerá concordância.

Quanto ao PCP, ainda não definiu a sua posição: não está previsto, por agora, que apresente qualquer proposta e recusa dizer se os deputados terão liberdade de voto nos diplomas do BE ou do PAN.

Nesta quarta-feira, Ana Paula Figueiredo vai estar nas galerias da Assembleia da República para assistir ao debate. Insiste que defende o “direito a morrer de forma calma, com tranquilidade”, “no seio da família”. Que quer alargar os direitos das pessoas, a sua liberdade de escolher o momento de morrer.

Tem esperança que o debate permita mudar a lei: “Quero dizer aos meus filhos: vocês conhecem a posição da mãe. Se esse direito já existir, peço que ajudem a mãe a ter uma partida serena e cheia de carinho e amor.”

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