Era bom que trocássemos umas ideias sobre política

Ao longo dos próximos dois meses, um ciclo de espectáculos no Centro Cultural de Belém aborda temas como revolução, refugiados, guerra, clandestinidade e colonialismo com crianças a partir dos seis anos.

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A Minha Casa era a Sede, de Judite Canha Fernandes e Teresa Gentil DR
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Terra Sonâmbula, de Nuno Pina Custódio, a partir de Mia Couto DR
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Um mini-museu vivo de memórias do Portugal recente DR

Como se sobrevive num país em guerra civil (e que terrível passado fará de nós, portugueses, os antepassados dessa longínqua história africana)? Também se comem gelados em Damasco (que fica onde, exactamente)? Isso da vida na clandestinidade era mesmo a sério ou só a fingir, tipo como quando se joga às escondidas? E, já que falamos desse assunto, quando é que a revolução acabou (não estará na altura de se fazer outra)?

São perguntas difíceis – para todas as infâncias, para todas as idades. Mas Madalena Wallenstein acredita que está na altura de a Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém (CCB) começar a fazê-las, para que daqui a uma geração não tenhamos de voltar a lamentar o abstencionismo militante dos menores de 25, ou a transformação das eleições num reality show abrilhantado por um sósia europeu de Donald Trump. Eis ao que vem, portanto, o ciclo Memórias de Intenção Política que a partir desta quinta-feira, e até 26 de Março, ali leva cinco espectáculos (um para maiores de seis, outro para maiores de oito, três para maiores de 12), cuja missão é introduzir na agenda dos mais novos tópicos como revolução, refugiados, guerra, clandestinidade, colonialismo, autodeterminação, liberdade e militarismo – e, se possível, pô-los a trocar umas ideias sobre esses assuntos nos debates que terão lugar no final de grande parte das apresentações.

Pela natureza do próprio ciclo, não há zonas interditas neste conjunto de espectáculos (incluindo estreias absolutas) com que o CCB pretende quebrar o gelo da participação política. Alguns apontam para o nosso umbigo – é de Portugal que se vai falar em A Minha Casa Era a Sede (14 a 26 de Fevereiro), em que Judite Canha Fernandes e Teresa Gentil reinventam em palco as dores de crescimento de uma filha de militantes comunistas na clandestinidade, ou em Um mini-museu vivo de memórias do Portugal recente (16 a 19 de Março), versão abreviada do enorme palimpsesto de Joana Craveiro sobre tudo aquilo por que passámos entre 1926 e 1976. Outros obrigam-nos a olhar lá para fora para ver as feridas que deixámos por cicatrizar em Moçambique, no caso da Terra Sonâmbula que Nuno Pina Custódio e Rosinda Costa construíram a partir do original de Mia Couto (26 a 29 de Janeiro), ou a guerra civil em curso na Síria, o inesgotável subject dos emails da jovem escritora Leen Rihawi que Ana Lázaro encena em Cartas de Damasco (7 a 19 de Março). E entre uns e outros, pairando muito acima de todas as coordenadas geográficas passadas, presentes e futuras, haverá ainda Agora era eu (8 a 26 de Março), em que Marta Bernardes e Pedro Moura se munem de palavras, imagens, sons e objectos para levar a plateia pela mão na aventura universal, intemporal, da construção de uma identidade.

Espectadores-cidadãos

Por muito díspares que pareçam estas cinco viagens, todas partem de narrativas autobiográficas, mais ou menos reais, mais ou menos ficcionais. O que, argumenta Madalena Wallenstein, coloca a política ao nível a que ela deve estar para que ninguém se sinta fora dela: “Pensámos este ciclo a partir de uma série de inquietações associadas a esta ideia de que a juventude resiste à participação política, de que ‘eles’ não votam, de que ‘eles’ não querem saber – o que terá muitas causas, incluindo a concorrência de todas as formas de entretenimento e um certo atraso cultural que ainda não teremos ultrapassado. Mas se assumirmos que a política somos nós e a maneira como, influenciados pelas circunstâncias, construímos a nossa identidade individual e colectiva; e se a abordarmos através de histórias autobiográficas que têm a ver com as oportunidades e os constrangimentos do crescimento de qualquer ser humano, é possível implicar os espectadores como cidadãos.”

A idade desses espectadores, admite a coordenadora da Fábrica das Artes, não é irrelevante, mas também não tem de ser uma barreira: “A ideia de que a infância deve estar protegida dentro de um globo de vidro é uma ideia adulta. O trabalho de aproximação às artes que desenvolvemos ao longo destes últimos oito anos confirma que os miúdos têm inquietações e pensamentos profundíssimos.” E nem sempre a escola é o contexto ideal para que eles se manifestem: “Muitos miúdos não sabem o que é o 25 de Abril. É matéria que fica para o final do ano lectivo e que muitas vezes acaba por não ser dada – ou por ser dada da mesma maneira chata que a Revolução Francesa. A mesma coisa com a Guerra Colonial, um tema sobre o qual há uma espécie de silêncio consentido, e que Terra Sonâmbula não deixará de suscitar. Assistirmos à maneira como os miúdos vão discutir um espectáculo como esse dá-nos acesso a eles.”

Para que esse acesso seja ainda mais produtivo, o ciclo será acompanhado por um grupo de espectadores muito especial com idades compreendidas entre os oito e os 15 anos – os sete Amigos da Fábrica das Artes, que há quatro anos acompanham em permanência a programação deste serviço do CCB, permitindo-lhe uma aferição contínua dos seus resultados, explica Madalena Wallenstein. “Temos aprendido muito com eles sobre o que é que lhes toca, sobre o que pode ser uma arte da infância – mais do que uma arte para a infância. Desta vez, desafiámo-los a criar um objecto artístico no final do ciclo. Porque o que há de verdadeiramente educativo nisto tudo é a activação do desejo de fazer coisas, de pôr coisas no mundo.” O que, bem vistas as coisas, tanto pode ser uma boa maneira de resumir a tarefa da arte como uma boa maneira de resumir a tarefa da política.

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