EUA acusam Israel de perpetuar a ocupação dos territórios palestinianos

A poucas semanas de sair de cena, secretário de Estado americano diz que os colonatos vão impedir a solução dos dois Estados. Netahyahu reage com força - diz que não precisa de sermões e pede apoio a Trump.

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Kerry e Netanyahu, em Setembro Reuters

A solução de dois Estados está em perigo e os Estados Unidos não podem evitar chamar a atenção para o facto, disse o secretário de Estado John Kerry num discurso sobre a questão israelo-palestiniana, depois de Washington ter permitido a aprovação de uma resolução crítica dos colonatos judaicos em território ocupado abstendo-se no Conselho de Segurança da ONU, na semana passada.

Um secretário de Estado prestes a sair de cena fazer um discurso de linhas orientadoras sobre um processo de paz inexistente – que tentou reanimar em 2013-14, sem sucesso – não é habitual. Na reacção ao discurso de Kerry, também o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, fez algo pouco habitual, e apelou à próxima Administração para ajudar a desfazer o mal feito pela actual.

Mas toda a transição de poder da actual Administração norte-americana para a próxima está a sair do cânone, com o Presidente eleito, Donald Trump, a tweetar frequentemente sobre qual deveria ser a acção do Presidente Barack Obama. 

Esta quarta-feira, Trump entrou de novo no debate: “Aguenta-te Israel, 20 de Janeiro está perto!”, dizia o próximo Presidente no final de uma sequência de mensagens em que acusava a Administração cessante de medidas desfavoráveis a Israel, desde “aquele acordo horrível com o Irão” (para evitar o crescimento nuclear da República Islâmica, que Israel critica por ser em seu entender demasiado brando) até ao tratar “com total desdém e desrespeito” do país.

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Kerry teve palavras duras para Israel: “Não podemos, em boa consciência, não fazer nada, e não dizer nada, quando vemos a esperança de paz desaparecer”, declarou. Porque a solução de dois Estados – o existente israelita e um futuro palestiniano – é a única maneira de ter uma paz duradoura, defendeu. “Como é que Israel pode conciliar a sua ocupação perpétua com os seus ideais democráticos?”, questionou Kerry. “O que defendemos é o futuro de Israel enquanto estado judaico e democrático, vivendo em paz e segurança ao lado dos seus vizinhos.”

Há agora o mesmo número de israelitas e palestinianos a viver no espaço de território entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo – onde estão Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza – disse Kerry. “Não têm escolha. Podem escolher viver juntos num Estado, ou separar-se em dois Estados”, continuou. “Mas há uma realidade fundamental: se a escolha for um só Estado, Israel pode ser judaico ou democrático – não poderá ser os dois ao mesmo tempo – e não terá verdadeiramente paz”.

Assim, a política dos colonatos “está prestes decidir o futuro de Israel”, disse Kerry. “O seu objectivo é claro: querem um Estado, o grande Israel.”

Logo a seguir à abstenção americana no Conselho de Segurança da ONU, o conselheiro de Obama Ben Rhodes notou que a actividade de construção nos colonatos “aumentou substancialmente” desde 2011 (quando os EUA tinham vetado uma resolução semelhante à agora aprovada). Os EUA dizem que este não é o único factor – e Rhodes sublinhou que a resolução também criticava o incitamento à violência e acções violentas do lado palestiniano..

A população nos colonatos judaicos na Cisjordânia está a crescer quatro vezes mais do que a que residente dentro do território israelita, diz o site Bloomberg. Qualquer acordo de paz implicaria certamente a retirada de colonos (e Israel já o fez, em 1982 quando retirou do Sinai e retirou 4300 colonos da península que devolveu ao Egipto a seguir a um tratado de paz, e na retirada unilateral da Faixa de Gaza em 2005 e retirada de 8500 pessoas dos colonatos locais quando Ariel Sharon decidiu deixar o território sob controlo palestiniano). Mas ninguém acredita que seja possível retirar de cidades como Maaleh Adumin ou Ariel, e alguns destes colonatos estão colocados em locais estratégicos para impedir algumas reivindicações palestinianas.

"Não precisamos de sermões"

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reagiu com uma conferência de imprensa às declarações de Kerry. Começou por acusar os EUA de ignorarem o terrorismo palestiniano e de concentrarem a responsabilização pela falta de paz em Israel. “Não precisamos de sermões de líderes estrangeiros sobre a importância da paz”, declarou Netanyahu.

Criticando os EUA por permitirem uma resolução na ONU “que encoraja boicotes e sanções”, Netanyahu disse esperar que o próximo Presidente, Donald Trump, “diminua o mal que foi feito”, e espera trabalhar com a próxima Administração e com o Congresso dos EUA para que isso aconteça.

Netanyahu voltou a acusar a Administração Obama de ter “organizado, avançado e levado a resolução ao Conselho de Segurança” – algo que os Estados Unidos já negaram – e disse que partilharia as provas com a próxima Administração.

Mas o primeiro-ministro israelita deixou ainda um apelo à actual Administração: que não permita a aprovação de mais nenhuma resolução no Conselho de Segurança. “Párem este jogo.”

O discurso de Kerry estava já programado antes da votação no Conselho de Segurança. E a reacção exacerbada de Israel à possível abstenção americana poderá ter acontecido mais por medo do discurso do que da resolução, dizia Nahum Barnea, um dos mais influentes colunistas de Israel.

Nenhuma das acções terá qualquer efeito por si só, sublinha o jornalista na sua coluna no diário de grande circulação Yeditoh Aharonoth. Mas o perigo é outro – “Se algum membro do Conselho de Segurança pega no discurso e decide pô-lo numa resolução, vamos ter novo drama em Nova Iorque”, escreveu Barnea ainda antes de Kerry ter falado. Os Estados Unidos teriam dificuldade em vetar uma resolução que ecoa um discurso de Kerry. “O resultado poderia ser um ameaça, muito maior, à posição de Israel na comunidade internacional”, defendeu Barnea. Netanyahu disse exactamente o mesmo no seu discurso, daí ter pedido aos EUA que não deixem passar mais resoluções.

De resto, o colunista diz que a discussão chama a atenção para uma verdade inconveniente para o Estado hebraico. “Depois de 50 anos a piscar o olho, enganar os outros e a nós próprios, o mundo está a tentar dizer-nos 14 contra zero [o número de votos a favor e contra a resolução] que chegou o momento da verdade: não podemos continuar a construir colonatos e rezar pela paz ao mesmo tempo”. Mas a questão já nem é a paz – “não vai haver paz no futuro próximo”. “A escolha é entre os colonatos e o Estado judaico e democrático de Israel, membro da comunidade internacional.”

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