Uma viagem (através da genética) que nos trouxe até à sétima pandemia de cólera

O que se passou com a bactéria da cólera a partir do final século XIX? Equipa de cientistas traçou as suas mutações genéticas desde essa altura, encontrando seis etapas de evolução da bactéria até se chegar à actual pandemia.

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Gravura da cólera em Paris no século XIX Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA/Jeanron del. Frilley

Desde o século XIX que a cólera tem percorrido o mundo e matando milhões de pessoas. Tudo indica que a primeira pandemia desta doença infecciosa, atingindo assim grandes áreas geográficas, surgiu no continente asiático em 1817. A partir daí, estendeu-se para todo o planeta em sucessivas pandemias, com o impulso de más condições sanitárias. Conflitos geopolíticos e migrações em massa também influenciaram a propagação da cólera. Agora estamos a viver a sétima pandemia, que uma investigação genética acaba de identificar como tendo começado na Indonésia em 1961.

Uma equipa internacional de cientistas, liderada por Lei Wang, da Universidade de Nankai, em Tianjin (China), traçou agora o percurso da evolução até à sétima pandemia de cólera, num estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Sem nos estendermos em pormenores: a cólera é uma infecção intestinal resultante da bactéria Vibrio cholerae (ou vibrião colérico), que entra no tecido epitelial e provoca a secreção de água e sais. Os principais sintomas associados à cólera são a diarreia aquosa e abundante, náuseas e vómitos, o que causa desidratação. A origem da infecção pode estar em água sem qualidade, comida contaminada e condições sanitárias deficitárias e tem tendência a desenvolver-se em temperaturas elevadas.

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A bactéria Vibrio cholerae John Toon

Para combater a cólera, é preciso restabelecer os líquidos no organismo. Sem tratamento, pode ser fatal. E há vacinas para esta bactéria. Em Portugal, a cólera já não existe, sublinha a Direcção Geral da Saúde (DGS). Mas a doença ainda continua a existir noutras partes do mundo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que morram entre 21 mil a 143 mil pessoas por ano de cólera. Sem dados disponíveis para todos os países, calcula-se que sejam infectadas por ano cerca de três milhões a cinco milhões de pessoas. Em 2015, contabilizaram-se cerca de 172 mil casos em todo o mundo – 41% em África e 37% na América, estima a OMS. Mesmo assim, o valor das infecções reduziu-se em cerca de 9% relativamente a 2014.

“Os países industrializados não têm praticamente casos de cólera há um século devido à qualidade da água e das infra-estruturas de tratamento de esgotos”, refere um boletim da OMS sobre a doença. “Contudo, os agentes causadores continuam a prosperar onde quer que haja condições habitacionais sobrelotadas e o acesso à água e as condições sanitárias não sejam bons.”

Uma história já conhecida…

Recuando à primeira vez que se pode falar de cólera como tal, vamos então até 1817, ao delta do rio Ganges, na Índia. Esta parte da história já é mais ou menos conhecida – contada aliás no livro História da Cólera, editado em 1992 por Dhiman Barua e William Greenough –, até ao início da sétima pandemia. Até 1823, a cólera já se tinha expandido para países como Singapura e a Síria. Também durante este período tropas vindas de uma guerra na Índia levaram a doença para Omã. E o fim da primeira pandemia coincidiu com a expansão da doença até às fronteiras do Mediterrâneo. Uma pandemia termina quando os surtos deixam de ter expressão.

A segunda grande vaga de cólera começou em 1829 e prolongou-se por 22 anos, até 1851. Foi neste período que se fizeram experiências para os primeiros tratamentos. Em 1830, a doença chegou ao território da agora ex-União Soviética e houve quem começasse a trabalhar num fluido injectável. Também entrou na Grã-Bretanha em 1832. A Portugal e Espanha chegou um ano depois. Os países da Península Ibérica tiveram a doença por causa de um navio que atracou no Porto.

Meca foi devastada pela segunda pandemia em 1846, quando morreram 15 mil pessoas. Pouco tempo depois, em 1849, estava a matar cerca de 54 mil pessoas em França, Itália e no Norte de África. Logo no ano seguinte expandiu- se para os Estados Unidos. Foi também por esta altura que o médico inglês John Snow provou que a cólera era transmitida pela água. E pela primeira vez, em 1851 em Paris, os cientistas encontraram-se para falar da cólera. Até 1938 houve 14 conferências.

A terceira pandemia durou menos tempo, entre 1852 a 1859. Se nos primeiros anos deixou muitas marcas na Síria, Inglaterra ou EUA, entre 1856 e 1858 foi grave em Portugal e Espanha. Foi também por estes anos que o anatomista Filippo Pacini examinou vários cadáveres na Toscana, em Itália. “Esta foi uma grande descoberta, mas permaneceu escondida. Apenas foi publicada como uma pequena curiosidade num jornal local em 1854, pois não foi convincentemente demonstrada”, lê-se no livro História da Cólera.

Em 1865 – na quarta pandemia, que decorreu de 1863 a 1879 –, Meca foi outra vez atingida, tendo morrido 30 mil dos 90 mil peregrinos. A doença também é devastadora em Istambul, na Arábia Saudita, em Itália e no Sul de França. Em 1865 chegou igualmente a Nova Iorque. E na Rússia esta pandemia vitimou cerca de 130 mil pessoas.

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Caricatura de supostas medidas contra a cólera Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA

Entre 1881 e 1896, na quinta pandemia, o número de infecções voltou a disparar. No Egipto, afectou mais de 58 mil pessoas e tornou-se um problema na América do Sul, nomeadamente na Argentina, no Chile e Uruguai. Por fim, a sexta pandemia surgiu em 1899. Afeganistão, Rússia e Meca foram algumas paragens da cólera, cuja transmissão foi impulsionada pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa de 1917. Apenas em 1923 os casos começaram a descer.

Há ainda um aspecto a reter na sexta pandemia. A bactéria sofreu mudanças. Até aí, as estirpes eram do chamado “biótipo clássico”, enquanto as estirpes da actual pandemia têm características distintas e os cientistas chamam ao seu biótipo “El Tor”.

… e um novo ponto de partida

Agora, equipa de Lei Wang descreveu, analisando mutações genéticas do El Tor, o que se passou com a bactéria entre a sexta e a sétima pandemias. Durante cinco anos, a equipa determinou a existência de seis etapas da migração da bactéria pelo mundo e da sua evolução até se chegar à actual pandemia. A primeira dessas etapas (pré-pandémicas) começou em 1897, no Médio Oriente. A pandemia mesmo iniciou-se em 1961, na Indonésia.

Neste trabalho, além de genomas da bactéria da cólera já publicados em bases de dados, a equipa sequenciou dez genomas completos, nomeadamente: dois da fase pré-pandémica da bactéria no Médio Oriente; um da cidade indonésia de Macáçar; e quatro da fase inicial da sétima pandemia na costa do Golfo do México, nos EUA e na China (1974), bem como na Austrália (1977).

Esta análise permitiu identificar as mutações genéticas na bactéria que levaram à origem da sétima pandemia. Construiu-se então uma árvore genética com as seis etapas de evolução da bactéria e a sua viagem pelo mundo. Foi na primeira etapa, entre 1897 e 1902, que se registou a existência do El Tor no Sul e Leste da Ásia. Daí passou para o Médio Oriente, ocorrendo uma propagação rápida com a viagem de milhares de peregrinos a Meca. Depois, espalhou-se pelos países vizinhos, como o Egipto e o Iraque. E ainda no Médio Oriente, a bactéria sofreu quatro mutações genéticas e outras quatro recombinações. É devido a estas mutações que provoca diarreia líquida, muito frequente na cólera, refere a equipa de Lei Wang.

Em seguida, entre 1908 a 1925, a bactéria passou do Médio Oriente para a cidade de Macáçar. E houve outras 21 mutações e 12 recombinações. “A linhagem ganhou uma virulência importante”, sublinha ao PÚBLICO Bin Liu, da equipa, também da Universidade de Nankai e um dos autores do artigo.

As mudanças genéticas continuaram e entre 1925 e 1954, na China, na Austrália e no golfo do México, houve outras 74 mutações e 36 recombinações. E, na última etapa antes do início da sétima pandemia, de 1954 a 1960, Macáçar volta a ser importante. Embora só tenham ocorrido 12 mutações, a propagação de indivíduo para indivíduo tornou-se mais fácil. A velocidade de propagação foi tal que começou uma nova pandemia. Em 1962, a OMS declarou que a doença é motivo de quarentena.

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Caricatura de supostas medidas de prevenção contra a cólera Biblioteca do Congresso

Ora neste período da história houve grande movimentação de pessoas. Em 1971, foram detectados 155 mil casos em todo o mundo. Em 1978 nas Maldivas, por exemplo, houve 11 mil casos, numa população de 200 mil pessoas.

Ainda em 2008, o Zimbabwe viu-se a braços com surtos de cólera, que afectaram 90 mil pessoas e matou quatro mil. Também no Haiti, em 2010, depois do terramoto, 700 mil pessoas ficaram infectadas e cerca de 8500 morreram. “O controlo desta doença nas economias em desenvolvimento é ainda um grande desafio”, considera Bin Liu.

Porquê traçar etapas anteriores à sétima pandemia? “Este estudo é importante para se compreender a tendência prevalecente de cólera”, responde-nos Bin Liu. 

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