Confusos?

Nos anos 80 a RTP passava uma série cómica americana cuja premissa era parodiar as telenovelas estado-unidenses conhecidas por “Soap Operas” — o nome da série era, precisamente, “Soap” — em que há sempre uma família rica, uma família pobre, um mordomo que tem mais juízo do que os patrões, e muitas surpresas e revelações. A diferença é que nessa série um único capítulo continha mais reviravoltas do que uma temporada inteira das telenovelas normais. E assim no início de cada episódio éramos submetidos a uma recapitulação em que nos era explicado (por exemplo) que afinal o rapaz rico era filho do pai pobre, a patroa andava com o cozinheiro, o jovem pobre assumia a sua homossexualidade e o seu pai tinha sido raptado por extraterrestres. No fim, uma voz segura de locutor de televisão dizia: “Confusos?” — e depois de uma pausa — “Deixarão de o estar depois de mais este episódio de Soap”.

E claro que era mentira. O episódio seguinte resultava sempre mais confuso do que o anterior. Na semana seguinte, a piada repetia-se. E nunca perdia piada.

Quase ninguém nos EUA se lembra desta série, para grande desilusão minha, a quem ela me parece perfeita para descrever o ambiente geral que se vive no país. As pessoas acordam e ligam o twitter para ver que nova loucura terá inventado o presidente-eleito durante a madrugada. Preparam o café enquanto vão vendo na TV as visitas à Trump Tower. No trabalho tentam evitar — sem sucesso — falar de política com os colegas, porque quando discordam se zangam e quando concordam, na maioria dos casos, se deprimem.

Um jovem jornalista senta-se comigo para um copo e uma conversa e abana a cabeça, desolado. “As notícias estavam aí, foram publicadas e eram conhecidas”, diz, “como podem não ter feito diferença e as pessoas agora fingirem-se surpreendidas?”. As conversas que tenho nestes dias enquanto me preparo para regressar a Portugal começam quase todas assim: toda a gente tem uma instituição na qual acredita — o jornalismo, a independência judicial, o estado de direito, a existência de uma oposição, a constituição federal — e cada um procede confessando o seu receio, às vezes a sua quase certeza, de que essa instituição já falhou ou vai falhar no futuro. Os americanos, tal como os russos e os turcos e os húngaros e muitos outros no passado — por vezes com grande ajuda do aparelho de estado dos EUA — vão percebendo como as instituições democráticas são na verdade extraordinariamente vulneráveis quando há uma vontade política persistente em fazê-las desmoronar.

Tudo isto teria mais valor pedagógico se fosse só uma telenovela. Mas quando o tuíte matinal de Donald Trump é um ataque verbal sem precedente à China — em que Trump comete o lapso de escrever “sem presidente” em vez de “sem precedente” — e nos apercebemos, precisamente por causa desse lapso só corrigido 90 minutos depois, que ninguém lê ou aconselha o presidente-eleito antes de ele atacar perante milhões de pessoas outra super-potência nuclear, aí a coisa fica mais séria. Já houve guerras que começaram por mal-entendidos, e noventa minutos pode já ser tarde de mais para mandar os mísseis voltarem para trás.

Hoje, à hora a que ler esta crónica, Trump já deve ter sido definitivamente eleito Presidente dos EUA. Os membros do Colégio Eleitoral revelam por vezes que estão, também eles, confusos. Vêem Trump atacar a China mas nunca o vêem criticar a Rússia pelos seus atos de ciber-interferência na política dos EUA. Mas que fazer? Talvez Trump seja mais cuidadoso por causa das muitas dívidas que têm a bancos próximos de Vladimir Putin? Será que ele vai ter outro comportamento depois de eleito? Que farão os extremistas que ele já pôs na Administração? E que papel terão os seus filhos ao gerir os negócios do pai, agora Presidente?

Estas e outras repostas no próximo episódio de “Trump”. Com sorte, pode ser que seja só uma telenovela.

 

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