Fugas de crianças à guarda do Estado dispararam em 2015

Em cinco anos houve mais de 1800 fugas das instituições de acolhimento na área de Lisboa. Situação agravou-se nos dois últimos anos e compromete protecção de crianças e jovens em perigo.

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As instituições de acolhimento sentem-se impotentes para lidar com o número crescente de casos NUNO FERREIRA SANTOS
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O problema das fugas é transversal a muitas residências de acolhimento, institutos públicos ou particulares de solidariedade social como a Casa da Estrela, na foto Nuno Ferreira Santos

Os números são relativos à cidade de Lisboa. Mas a tendência para o aumento de fugas de crianças sob medidas de promoção e protecção em residências de acolhimento estende-se a toda a zona metropolitana, confirma fonte da Polícia de Segurança Pública (PSP).

Em 2015, foi atingido o pico de 461 fugas só nas cinco divisões da PSP de Lisboa, quando em 2014 o número de participações feitas por instituições de acolhimento na mesma área geográfica tinha sido de 265. Já em 2016, mas apenas até Outubro, e ainda de acordo com os dados compilados pela PSP a pedido do PÚBLICO, o número de 387 participações já tinha ultrapassado os níveis de 2013 (386) e 2012 (341).

Esta é uma tendência que preocupa educadores e responsáveis de residências de acolhimento, como a Casa Pia de Lisboa, instituto público, ou a Casa da Estrela, instituição particular de solidariedade social (IPSS). Numa e noutra são relatadas saídas sem autorização de jovens com menos de 18 anos, desaparecimentos durante dias ou semanas, ausências de algumas horas — fugas. O problema é transversal a muitas outras residências de acolhimento.

No Algueirão, concelho de Sintra, há um caso que preocupa especialmente os educadores, por se tratar de uma criança de 11 anos. O rapaz foi acolhido numa das 13 residências da Casa Pia de Lisboa e faz fugas prolongadas há vários meses. “Uma coisa são ausências de adolescentes de 16 anos, outra coisa é estarmos perante fugas persistentes de uma criança de 11 anos”, diz um educador, que qualifica este caso de “escandaloso”.

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A maior parte das vezes, a criança ou jovem regressa à instituição por sua iniciativa. Há suspeitas mas poucas certezas sobre o local ou com quem esteve. E, neste caso particular do menino de 11 anos, há suspeitas de que esteja a ser aliciado para pornografia ou prostituição infantil. Dizer que passa os dias em casa de um tio que ninguém na instituição conhece não tranquiliza, até porque os educadores sabem quem são os familiares das crianças acolhidas — pais, tios ou avós — e não se trata de nenhum deles.

Além das várias participações por desaparecimento ou ausência não autorizada à PSP e ao tribunal onde corre o processo de promoção e protecção do rapaz, “o caso já foi reportado às entidades judiciais em tempo oportuno, mas ainda não existe pronúncia sobre eventuais sequências”, confirma Sandra Veiga, directora do Departamento de Apoio à Coordenação da Unidade de Acção Social e Acolhimento da Casa Pia, referindo-se ao Ministério Público (MP).

Os processos são morosos, confirma. E informar os tribunais ou o MP nem sempre garante acautelar a protecção.

Vítimas sem solução

“Houve situações que nos preocuparam aqui há uns anos. Foram reportadas e passados três anos veio a decisão ou de arquivamento ou [de um ofício] a fazer uma pergunta”, lembra Sandra Veiga. “Também pode o juiz entender que não é nada, e arquiva. São crianças que estão confiadas à instituição.”

O jovem pode andar sempre a fugir mas é preciso cometer um crime para haver uma verdadeira actuação. Quando é ele a vítima de um crime durante essas ausências, não há solução na lei, diz um educador de uma das instituições contactadas.

Há situações que se resolvem, mas também há casos em que o problema, ao não ser resolvido, se arrasta e agrava: crianças que, depois de cumprirem a medida tutelar educativa (se cometeram um furto, um roubo, uma agressão ou tráfico), ou depois de concluída uma terapia de desintoxicação, voltam para a residência do acolhimento e o mais provável é retomarem os ciclos de ausências e fugas.

“Os tribunais deixam estes processos adormecidos porque são crianças que estão entregues a uma instituição e que supostamente já não estão em perigo”, confirma Sandra Veiga.

“É o Estado que tem o dever de protecção destas crianças. Mesmo as IPSS estão a assumir uma função que lhes foi delegada pelo Estado. Elas foram tiradas à família por estarem em perigo”, realça o chefe João Dias, da 1.ª Divisão da PSP do Comando Metropolitano de Lisboa.

Meninas de 13 e 14 anos

Também na Casa da Estrela, uma IPSS, a equipa técnica tem-se deparado, nos últimos anos, com mais fugas. “Em 2015 tivemos situações muito difíceis”, diz o responsável da residência de acolhimento Manuel de Gomes Melo, uma instituição criada no fim do seculo XIX como Albergue das Crianças Abandonadas, vocacionada para crianças órfãs ou de famílias muito pobres. Depois passou a Centro de Promoção Juvenil. Casa da Estrela foi o nome escolhido pelas próprias raparigas ali acolhidas.

“Na confusão do ano passado, houve fugas de meninas de 13 e 14 anos”, diz Gomes de Melo. E também este responsável revela impotência mesmo havendo a forte probabilidade de estas crianças serem aliciadas para redes de prostituição ou de virem a ser “vítimas de tráfico”. Quando acontece a uma, “as outras podem ser afectadas pela indisciplina e aliciadas pela amiga para hábitos de vida desadequados”.

E diz: “O sistema funciona de uma maneira que, perante casos graves ou casos suspeitos de aliciamento para redes de prostituição ou outras, a casa de acolhimento não tem margem para fazer nada. Se suspeitarmos, temos a obrigação de denunciar a situação ao MP.”

Comportamentos sexualizados

Também transmitida às entidades judiciais foi a situação de duas adolescentes com fugas frequentes e prolongadas de uma residência da Casa Pia de Lisboa. São denúncias “graves”, diz Sandra Veiga, da direcção da instituição.

A situação de uma delas era conhecida há muito tempo, mas a necessidade de se tomar uma medida só se tornou evidente quando um vídeo colocado na Internet mostrou a jovem em poses de carácter sexual. O facto de ela se expor assim não está tipificado como crime. Apenas “se ela estiver a ser usada ou se foi coagida, é crime”, continua Sandra Veiga.

Qual a responsabilidade da instituição enquanto encarregado de educação desta jovem? Sandra Veiga começa por realçar que, se o acto foi cometido “durante uma ausência não consentida”, o máximo que a instituição pode fazer é confirmar isso, de que estava comunicada a ausência e averiguar a situação. E acrescenta: “Em último caso, a responsabilidade será sempre da Casa Pia, porque se alguma criança nossa se entrega a actividades que podem comprometer a sua segurança e o seu bem-estar emocional, em termos latos, seremos sempre responsáveis. Mas conclui: “Em termos legais ou judiciais, provavelmente não."

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