“Seria impensável” excluir uma parte dos gestores públicos da responsabilidade financeira

Guilherme d'Oliveira Martins, ex-presidente do Tribunal de Contas, diz que a entidade vai continuar a responsabilizar os autarcas. Instituição tem aberto uma média de dez processos por ano.

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O antigo presidente do Tribunal de Contas (TdC) Guilherme d'Oliveira Martins diz que a entidade que presidia vai continuar a responsabilizar os autarcas por eventual responsabilidade financeira, apesar da mudança que o Governo pretende introduzir na lei e diz mesmo que seria “impensável e impossível” excluir parte dos gestores públicos dessa responsabilidade.

Em causa está uma medida prevista no Orçamento do Estado para 2017 onde o Governo propõe uma alteração na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, o organismo a quem compete fiscalizar a forma como os órgãos de Estado aplicam os dinheiros públicos. Guilherme d’Oliveira Martins diz que não adianta nada estar a equiparar os estatutos de governantes e autarcas se esta equiparação não for acompanhada de uma definição de um regime de responsabilidade, que deixe bem claro quem é responsável financeiramente (isto é, o “exactor orçamental ou estação competente”). Se essa definição não for feita, alerta Oliveira Martins, “tudo fica na mesma por falta de regulamentação”.

O polémico artigo que, na proposta de lei de Orçamento de Estado, equipara os órgãos executivos dos órgãos municipais aos membros do Governo, ilibando-os de responsabilidade financeira no caso de terem pareceres favoráveis de técnicos dos serviços, mereceu três propostas de alteração, uma delas do próprio Partido Socialista. A proposta do partido do Governo, porém, limita-se a fazer “uma correcção formal de redacção” por forma a incluir todos “os titulares dos órgãos executivos das autarquias locais” em vez de “membros do órgão executivo da câmara municipal”. Já as propostas de alteração entregues pelo Bloco de Esquerda e pelo CDS/PP passam pela pura e simples eliminação do artigo.

“O Tribunal [de Contas] continuará a responsabilizar os autarcas, por falta de definição dos exactores, sendo a Constituição clara ao atribuir ao Tribunal de Contas a competência exclusiva da efectivação da responsabilidade financeira. Seria impensável e impossível deixar de fora da responsabilidade uma parte dos gestores de dinheiros públicos”, argumenta, numa declaração enviada ao PÚBLICO.

Quando ouvido no Parlamento, o Ministro-adjunto, Eduardo Cabrita, defendeu que a intenção do Governo não era desresponsabilizar, mas antes “corrigir uma norma discriminatória, que fazia com que existissem titulares de cargos públicos com diferentes regimes”. A proposta foi amplamente aplaudida pela Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), com o presidente do organismo, Manuel Machado, a referir que a lei actual atribuiu aos eleitos locais “mais responsabilidade civil e criminal do que a um ministro”.

Nos últimos cinco anos o Tribunal de Contas instaurou 58 processos de responsabilidade financeira envolvendo municípios. Destes, 24 foram objecto de sentença condenatória. “As infracções típicas e mais frequentes são pagamentos ilegais, incumprimento de normas contabilísticas orçamentais, contratação ilegal e pagamento antes do visto”, esclareceu ao PÚBLICO fonte do TdC.

Já Vítor Caldeira, actual presidente do Tribunal de Contas que pediu para ser ouvido pela Assembleia da República sobre esta matéria, recordou que a Lei do Orçamento de Estado não é o instrumento adequado para “assegurar uma revisão estruturada, objectiva, coerente e transparente do regime da responsabilidade financeira”.

Vítor Caldeira defendeu, numa audição conjunta a duas comissões parlamentares, que a matéria da responsabilização financeira deveria ser “tratada de forma sistémica”. Nas considerações que quis deixar aos deputados, defendeu que a proposta de extensão do regime de responsabilidade financeira dos membros do Governo aos elementos das câmaras municipais introduzia uma “discriminação positiva” que era importante clarificar. E lembrou que, de acordo com a Constituição, as autarquias locais “são formas de administração autónoma” e, nessa medida “prosseguem funções tipicamente administrativas e não funções politicas como os membros do Governo”. Mesmo assim, sublinhou, “legisla quem pode, controla quem deve”.

O PSD que não apresentou proposta de alteração. Na mesma audição no Parlamento o deputado Duarte Pacheco afirmou que era um “desrespeito” que o Governo se propusesse a fazer alterações na Lei de Organização do Processo do TdC. O PCP também não fez alterações.

Guilherme D’Oliveira Martins, que, a título pessoal, sempre defendeu que os maiores municípios deviam ter um regime próximo do Governo, entende que estas alterações não podem ser reportadas à Lei de Organização e Processo da instituição. Trata-se isso sim, de matéria da administração municipal financeira. É aí que o legislador terá de definir quem é, no município, a "estação competente" ou exactor orçamental, e também, porventura, quem são os grandes municípios que podem merecer alguma equiparação. Em causa estarão as autarquias que gerem grandes orçamentos municipais, como Lisboa, Porto, Gaia ou Sintra. 

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