O elogio da zona de conforto

O mais preocupante sinal da gravidade da epidemia ideológica que hoje corrói os laços sociais que suportam a nossa vida comum está mesmo no facto de ter sido tão fácil dar mau nome à expressão “zona de conforto”

1. Uma conhecida revista de circulação internacional publicou em tempos um artigo em que se recenseavam livros recentes de tipo biográfico, ou autobiográfico, sobre mulheres de sucesso, sobretudo nos negócios, em vários países asiáticos. De comum, os livros tinham uma conclusão bem simples: se aquelas mulheres haviam triunfado na vida que escolheram, então não fazia sentido substituir a seleção na base do mérito por intervenções públicas, sobretudo instituindo qualquer tipo de quotas. De comum, ainda, a conclusão de que as biografadas eram pessoas excecionais. Ora, foi exatamente esta última conclusão que suscitou a crítica feita no artigo à tese da dispensabilidade de medidas de correção das desigualdades de género. Argumentava-se que a prova daquelas desigualdades residia precisamente no facto de só mulheres excecionais poderem ver o seu mérito reconhecido. E contrapunha-se que, numa sociedade verdadeiramente igualitária, do ponto de vista liberal, qualquer mulher deveria poder ver o seu mérito reconhecido, não apenas as excecionais. Concluía-se, afirmando-se ser isso mesmo que significava institucionalizar a igualdade: viabilizar o reconhecimento dos méritos normais, não apenas dos excecionais.

2. Lembrando aquele artigo do The Economist estive para dar a este texto o título “contra a excelência”. Não porque, tendo entrado em delírio, entenda que a excelência deva ser penalizada, dificultada ou desvalorizada de alguma forma. Mas porque a ideologia da excelência, hoje tão difundida, usa a palavra para justificar a transformação do mundo numa corrida de obstáculos, o que, é suposto, permitiria estimular o mérito e selecionar os mais meritórios. Nesta variante do darwinismo social de má memória, a seleção natural far-se-ia através da superação de obstáculos como a generalização da flexibilização dos vínculos sociais ou a permanente instabilização dos percursos de vida. Precarização sob o rótulo de mobilidade e arbitrariedade a pretexto de flexibilização seriam, no mundo do trabalho, os modos de concretização dos obstáculos a superar numa competição individual de todos contra todos que premiaria o mérito de uns e explicaria o insucesso de outros. Ou, como se diz na publicidade de um banco nacional “dá 150% de ti, sê a melhor, porque quando se é bom o dinheiro vem”.

3. A insistência na necessidade de mais excelência e menos zona de conforto tende a ser pragmaticamente justificada com o argumento do crescimento. Só assim, diz-se, poderemos voltar a inovar e a crescer. Como se os tempos de mais crescimento no pós-II Guerra Mundial não tivessem sido também os tempos de mais estabilidade e coesão social, condições, aliás, desse mesmo crescimento. Precarização e flexibilização, com o consequente agravamento da dualização e das desigualdades, não são requisitos técnicos das nossas economias mas escolhas políticas que podem ser modificadas. Um governo decente, orientado pela promoção do bem-estar da maioria dos seus cidadãos, é um governo que promove a possibilidade de estabilização dos vínculos e dos percursos de vida, ao mesmo tempo que recusa a valorização positiva da incerteza como estímulo.

4. O mais preocupante sinal da gravidade da epidemia ideológica que hoje corrói os laços sociais que suportam a nossa vida comum está mesmo no facto de ter sido tão fácil dar mau nome à expressão “zona de conforto”. Venha ela.

Sociólogo, professor do ISCTE-IUL e investigador no CIES-IUL. Secretário nacional do PS

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