Delação premiada pode violar Convenção Europeia dos Direitos Humanos

Quem o diz é o gabinete da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que defende que o regime existente no Brasil não têm correspondência “nos princípios estruturantes do processo penal nacional”.

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Ministra diz que o Governo não pretende legislar sobre justiça negociada. evr enric vives-rubio

A delação premiada como está prevista no direito brasileiro, que permite a um suspeito beneficiar da redução ou mesmo um perdão de pena em troca da denúncia de outros parceiros, “não têm correspondência na tradição, nem nos princípios estruturantes do processo penal nacional” e pode mesmo violar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que Portugal está obrigado a respeitar. Quem o diz é o gabinete da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO, em que se garante que o Executivo não pretende avançar com qualquer iniciativa no âmbito da justiça negociada.  

“O Governo não tem prevista, para a legislatura, qualquer iniciativa que ultrapasse os limites já previstos na legislação existente nesta matéria, nomeadamente que implique uma negociação envolvendo o perdão de penas”, lê-se na resposta, que começa por sublinhar que o direito premial já existe no nosso ordenamento jurídico.

No passado domingo, o Jornal de Notícias pôs o assunto na ordem do dia, com uma citação da ministra: "O debate sobre a justiça negociada é importante e possível". Isto depois do juiz Carlos Alexandre ter defendido numa entrevista ao Expresso no mês passado que este tipo de mecanismos seria benéfico ao combate à corrupção e ao crime altamente organizado.

“Relativamente aos contornos do instituto da ‘delação premiada’ existentes no direito brasileiro, estes não têm correspondência na tradição, nem nos princípios estruturantes do processo penal nacional e dificilmente se harmonizarão com a noção de processo equitativo, tal como prevista na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e entendida pela jurisprudência do mesmo tribunal”, afirma o gabinete da ministra.

O advogado José António Barreiros, especialista em Direito Penal, concorda e explica porquê: o processo equitativo presume que as pessoas agem com total liberdade, mas quem está a negociar a delação premiada está a fazê-lo sob pressão. “É um mecanismo que coloca ao mesmo nível os órgãos de justiça e alguns arguidos com o objectivo de prejudicar outros”, considera o advogado, defendendo que não raras vezes leva a falsas denúncias.

Lei já prevê dispensa de pena

Na resposta enviada ao PÚBLICO, o gabinete de Francisca Van Dunem recorda que o Código Penal já prevê “dispensa ou atenuação de pena” em casos de corrupção ou de recebimento indevido de vantagens. Para que a pena seja dispensada, contudo, é necessário que o agente denuncie o crime no prazo de 30 dias após a prática do acto e sempre antes da instauração de um processo-crime e, no caso de ter recebido uma vantagem, a restitua de forma voluntária. Sobre esta norma, a antiga directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, já disse que a lei é de tal forma restritiva que não tem qualquer eficácia prática.

A atenuação da pena é menos difícil de obter, exigindo o Código Penal que até ao fim da audiência de julgamento o arguido auxilie “na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis”. A norma é similar a uma existente no diploma que prevê medidas de combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira, e que prevê essa possibilidade num leque mais alargado de crimes que inclui o peculato, a participação económica em negócio e infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional.

O gabinete de Francisca Van Dunem sublinha ainda que já existem “institutos de consenso e reconciliação”, como a suspensão provisória do processo, que permite a um arguido ver o inquérito congelado desde que reconheça o crime e pague um determinado montante ou adopte um determinado comportamento, como frequentar um programa. “Não há uma negociação sobre os factos, mas um consenso em torno do conteúdo da reacção criminal, depois de todos os sujeitos processuais terem feito o que lhes compete no quadro do processo equitativo (a acusação indagou e produziu autonomamente prova e a defesa refutou-a nos limites que considerou adequados, usando de todas as garantias)”, resume-se.

Ministra diz que debate é importante

O gabinete de Van Dunem diz que o debate sobre “a extensão do consenso” na justiça penal “é possível e importante, também no que respeita à criminalidade grave que tem muitas vezes reflexos a nível da economia nacional”. Mesmo assim o Governo insiste que “não existe qualquer iniciativa política do Governo nesta matéria”.

Em 2012, Francisca Van Dunem, então procuradora-geral distrital de Lisboa, recomendou aos magistrados que estavam na sua dependência que ponderassem a realização de acordos em sentenças penais. Estes implicavam que os arguidos confessassem em julgamento os crimes que lhes eram imputados após negociar com o Ministério Público o limite máximo da pena a aplicar. Ao juiz competiria controlar e comprovar a validade e a credibilidade da confissão e determinar a pena concreta, dentro dos limites acordados.

Esta questão começou a ser discutida nos meios judiciais após, em 2011, o reputado professor catedrático, já jubilado, Figueiredo Dias, ter publicado o livro Acordos sobre a sentença em processo penal – O Fim do Estado de Direito ou um Novo Princípio. Pelo menos dois tribunais, o de Ponta Delgada e o de Vouzela, homologaram acordos deste tipo, tendo este último sido anulado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Num longo acórdão, no qual analisam este tipo de acordo em vários sistemas jurídicos europeus, dois juízes conselheiros acabam por considerar que o “direito processual português não admite acordos negociados de sentença”.

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