Os alvos do Presidente

Num discurso curto, Marcelo Rebelo de Sousa falou sobre a razão de ser das “desilusões, de desconfiança e descrenças” dos portugueses, a saber: “o cansaço por haver casos a mais de princípios vividos de menos”. Que casos? Que princípios?

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Marcelo falou durante sete minutos Nuno Ferreira Santos

Os que se deslumbram com o poder

As palavras exactas do Presidente não são dirigidas a ninguém, mas encaixam nos vários casos em que o exercício do poder conduziu a processos judiciais complexos, como os que envolvem José Sócrates ou Miguel Macedo (suspeitos) ou o que envolveram Isaltino Morais e António Vara (já condenados). “De cada vez que um responsável político se deslumbra com o poder, se acha o centro do mundo (...), alimenta clientelas, redes de influência e de promoção social, económica e política, de cada vez que isso acontece (...) é a democracia que sofre”, disse Marcelo.

O que aconteceu: No caso concreto de José Sócrates, o ex-primeiro-ministro foi detido em 2014, por “suspeitas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção”, supostamente levados a cabo quando era governante.

Como está o caso: José Sócrates mantém-se como suspeito a aguardar acusação.

Os que confundem poder político e económico

Não é a primeira vez que Marcelo Rebelo de Sousa se refere aos problemas criados pela confusão entre política e economia. A última vez que o fez, em Viseu, referia-se aos governantes, Rocha Andrade, João Vasconcelos e Jorge Oliveira, que viajaram para França a convite da Galp para assistirem ao Euro 2016. No Verão, depois de a polémica se ter instalado, Marcelo disse que “tudo o que possa permitir uma suspeição do relacionamento entre poder económico e poder político não é bom para o poder político” nem “para a visão que as pessoas têm dos políticos.”

O que aconteceu: Num primeiro momento, os envolvidos assumiram que pagariam do seu bolso as viagens à Galp e o Governo anunciou a elaboração de um código conduta, dando o caso por “encerrado”. Mas a Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito e, em finais de Agosto, houve buscas à Galp relacionadas com os convites.

Como está o caso: O código de conduta foi discutido e aprovado em Conselho de Ministros publicado em Diário da República e no portal do Governo (e assim foi dado conhecimento dele ao Executivo) e os secretários de Estado terão pago as viagens, mas nunca mostraram os comprovativos — o PÚBLICO aproveitou esta oportunidade para voltar a fazer esse pedido.

Esta frase também pode aplicar-se ao convite feito pela Goldman Sachs a Durão Barroso (e por ele aceite) para ser chairman deste que é o maior banco de investimento do mundo, sobretudo se tivermos em conta o que o PÚBLICO revelou há algumas semanas sobre a relação entre Durão Barroso e o banco quando ainda estava em funções em Bruxelas. “Os banqueiros faziam chegar ‘confidencialmente’ ao gabinete de Barroso sugestões de alteração às políticas da UE, que os seus conselheiros liam ‘com grande interesse’. São emails e cartas que mostram como o Goldman se dizia ‘encantado’ com algumas posições de Barroso”, escrevia o jornal na sua edição de 24 de Setembro.

O que aconteceu: Depois de se saber que Durão Barroso seria chairman da Goldman Sachs, as críticas ao ex-presidente da CE intensificaram-se. De França vieram algumas das mais violentas. Mas também a Provedora de Justiça Europeia, Emily O’Rilley, disse que a contratação de Durão Barroso “levanta dúvidas sobre a adequação” do código de conduta seguido por Bruxelas.  “Não fui para nenhum cartel da droga, estou a trabalhar numa entidade legal”, disse Durão.

Como está o caso: Durão Barroso aceitou o cargo para que foi convidado e assumiu-o. Soube-se entretanto que está a receber, desde que fez 60 anos, em 2016, o valor mensal relativo à pensão antecipada a que tem direito por ter sido presidente da CE durante 10 anos. Jean Claude-Juncker, o seu sucessor, terá dado instruções ao seu gabinete para tratar José Manuel Barroso como qualquer outro lobista com ligações a Bruxelas.

Os que escolhem os sucessores e transmitem o poder por herança

A um ano de eleições autárquicas, não seria de estranhar se Marcelo Rebelo de Sousa tivesse em mente, ao proferir esta declaração, a situação comummente aceite de que, em muitos municípios, o presidente abandone funções antes do final de mandato e passe a presidência directamente para as mãos do seu vice-presidente, sem que haja lugar a eleições. Na prática, esta artimanha legal permite que o poder se “transmita por herança”, como acontecia na Monarquia. Aconteceu em Lisboa, por exemplo, em 2011. António Costa foi eleito primeiro-ministro e deixou a autarquia nas mãos do seu número dois, Fernando Medina, escolhendo o sucessor – sem eleições (já havia acontecido com Pedro Santana Lopes e Carmona Rodrigues). Também em Cascais, a troca entre António Capucho e Carlos Carreiras seguiu a mesma lógica.

Os dos “casos a mais” que geram desconfiança

A presidente da CCDR-Centro, Ana Abrunhosa, e o marido foram recentemente acusados pelo Ministério Público de dois crimes de difamação agravada e um de denúncia caluniosa, por supostamente terem escrito duas cartas anónimas que imputavam acusações graves, e de acordo com a acusação “falsas”, ao ex-presidente daquele organismo. 

Em Junho, o ministro do Planeamento e Infra-estruturas, Pedro Marques, havia exonerado os presidentes da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN), Emídio Gomes, e do Algarve (CCDRA), David Santos, numa decisão que causou perplexidade. Em comunicado, o ministério justificou a decisão, no caso do líder da CCDRN, pelo “incumprimento reiterado das orientações da tutela sobre matérias inerentes ao exercício das suas funções”

O que aconteceu: Duas cartas terão sido escritas em 2013, com o propósito de que Ana Abrunhosa sucedesse “ao ofendido no cargo que há muito ambicionava”, lê-se nas 12 páginas de acusação escritas pelo Ministério Público.

Como está o caso:  Na terça-feira, o PÚBLICO tentou contactar o Ministério do Planeamento e das Infra-estruturas (que tutela as CCDR) para saber se mantém a confiança naquela responsável, mas não obteve resposta. Ontem, voltou a insistir, sem sucesso.

Os que se recusam a sair<_o3a_p>

O ex-presidente do Programa Operacional Factores de Competitividade (Compete), organismo público que gere perto de 6,2 mil milhões de fundos comunitários destinados às empresas, soube em Abril pela comunicação social que iria ser afastado do lugar. Apesar de nunca ter sido oficialmente exonerado, o seu substituto foi nomeado quase de imediato. Rui Vinhas da Silva não se conformou e, durante alguns dias, recusou-se a abandonar as instalações do Compete. Só se retirou quando deu entrada com duas intimações em tribunal a exigir que lhe passassem um documento que justificasse a sua demissão. No final de Setembro, o Supremo pronunciou-se sobre o caso, considerando que não houve um verdadeiro acto de exoneração. Vinhas da Silva prepara-se, por isso, para dar entrada a uma nova acção judicial, em que exigirá uma indemnização avultada.<_o3a_p>

O que aconteceu: Rui Vinhas da Silva recusou-se a abandonar o cargo de presidente do Compete porque o Governo não proferiu um despacho de nomeação. Durante vários dias, e já com um substituto nomeado, manteve-se nas instalações do organismo que gere 6,2 mil milhões de fundos comunitários.<_o3a_p>

Como está o caso:  O gestor já ganhou em tribunal uma acção em que se conclui que não houve um acto de demissão e prepara-se para exigir judicialmente os salários em atraso, uma indemnização pela cessação de contrato e compensações morais.

Os que geram polémica desde o primeiro dia<_o3a_p>

A nomeação de Lígia Fonseca para vogal da administração da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) causou polémica desde o primeiro dia, porque a gestora, que era até então técnica especialista no Ministério da Economia de António Pires de Lima, foi designada em regime de substituição e sem passar pelo crivo da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública. Apesar da controvérsia, ficou no cargo quase dois anos (de Agosto de 2014 até Julho de 2016) e foi preciso o actual Governo pedir pareceres à Inspecção-Geral de Finanças e à Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público para comprovar que estava ilegalmente no cargo. Foi o próprio presidente do regulador da aviação, que tem neste momento em mãos uma análise crucial à venda da TAP, que demitiu Lígia Fonseca. Os problemas, porém, não terminaram aí. Já houve pelo menos uma empresa fiscalizada pela ANAC que contestou decisões do supervisor, fundamentando-se no facto de conterem a assinatura da agora ex-vogal.<_o3a_p>

O que aconteceu: Lígia Fonseca foi nomeada para o supervisor da aviação sem parecer prévio e manteve-se em substituição no cargo mesmo depois de a natureza jurídica da ANAC ter sido alterada, o que obrigaria a que fosse oficialmente designada para a “nova” entidade.<_o3a_p>

Como está o caso:  A gestora foi afastada em Julho, quase dois anos depois de ter entrado na administração do regulador, mas a sua substituta só foi nomeada em Setembro. Trata-se de Tânia Cardoso Simões, até agora jurista na Autoridade da Concorrência. 

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