Parem as rotativas: Os últimos dois jornalistas saem da Fleet Street

Aos dois jornalistas apanhados "no último parágrafo" da história do jornalismo britânico cabe-lhes fechar a porta. O jornalismo já não mora aqui, nesta rua de Londres, mas ainda "há parágrafos e capítulos para serem escritos”.

Smith e Sherriff despediram-se do seu jornal na sexta-feira
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Smith e Sherriff despediram-se do seu jornal na sexta-feira Daniel Leal-Olivas/AFP
A imprensa britânica continua a ser conhecida como “Fleet Street”
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A imprensa britânica continua a ser conhecida como “Fleet Street” Neil Hall/Reuters

Três décadas depois do magnata dos media Rupert Murdoch ter instigado o seu desaparecimento como casa da indústria dos jornais no Reino Unido, papel que desempenhava há séculos, a Fleet Street de Londres disse adeus aos seus dois últimos jornalistas.

Conhecida como a “Rua da Vergonha”, a Fleet Street chegou a albergar milhares de repórteres, editores e gráficas que trabalhavam para os maiores jornais nacionais e para as publicações internacionais e regionais. A imprensa britânica continua a ser colectivamente conhecida como “Fleet Street”, mas desde sexta-feira que já não há nenhum jornalista a trabalhar lá.

O jornal escocês Sunday Post fechou as suas operações em Londres e encerrou o escritório que mantinha nos números 185-186. “É um dia muito mais triste para o jornalismo do que para mim”, diz Darryl Smith, de 43 anos, um dos dois últimos escribas da rua. “Já não há mais jornalismo na Fleet Street.” A artéria tornou-se sinónimo de imprensa em 1500, quando Wynkyn de Worde aqui estabeleceu uma gráfica. O primeiro diário, o Daily Courant, foi lançado em 1702.

O último jornal a despedir-se sai da mesma morada onde se publicou a primeira versão inglesa do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx, enquanto Sweeney Todd, "o barbeiro diabólico de Fleet Street", degolava os seus clientes no número 186.

Na sombra da Catedral de St Paul, a rua tinha a localização ideal para os jornalistas, a um curto passeio do distrito financeiro da cidade, dos Tribunais Reais da Justiça e dos políticos em Westminster.

“Qualquer pessoa interessada em jornalismo e jornais de massas percebe que a Fleet Street é o coração de tudo”, afirmou Murdoch quando comprou o tablóide News of the World, em 1969. Contudo, foi ele a estar no início do seu declínio quando, em 1986, transferiu os seus títulos, que na altura já incluíam os jornais Times e o Sunday Times e o tablóide Sun, para um edifício construído de raiz no Leste de Londres, onde as novas tecnologias substituíram as máquinas de metal quente.

A decisão de Murdoch teve um motivo muito concreto: romper uma longa greve do sindicato da inústria editorial, que não conseguiu transferir a sua luta para a fortaleza de Wapping, no Leste da cidade.

Das máquinas de escrever aos banqueiros

Num espaço de três anos, todos os outros jornais nacionais se seguiam, ansiosos por cortar custos numa indústria agora dizimada pelo crescimento da Internet. Há muito que os jornalistas deixaram a velha sede da Reuters no número 85, que agora acolhe um restaurante elegante. Por estes dias, a rua onde antes ecoavam os sons ruidosos das máquinas de escrever, é a favorita de banqueiros e contabilistas. No edifício de Art Deco onde já funcionou o Daily Express está agora a Goldman Sachs.

“A maioria agora são banqueiros”, diz Smith. “Nem sequer tenho a certeza que as pessoas aqui conhecem a história.” Smith começou a trabalhar na Fleet Street aos 18 anos, atraído pelo seu passado famoso, e um dia corrigiu um guia turístico num autocarro que tinha acabado de informar os passageiros que esta já não era a casa do jornalismo britânico. “Pus a cabeça fora da janela e gritei ‘ainda estamos aqui’”.

O colega que acompanha Smith nesta despedida é Gavin Sherrif, de 54 anos, que começou a trabalhar no Sunday Post, na Fleet Street, há 32 anos, subindo de assistente editorial até repórter principal de Londres. “Correspondia a todos os estereótipos. Lembro-me de passar fascinado com as carrinhas enormes com grandes rolos de papel” em que os jornais eram impressos, conta.

“Quando se entrava na redacção sentíamos que estávamos a entrar num sítio especial. Era uma sala cheia de fumo, onde não se via de um lado ao outro, cheia de pessoas a golpearem máquinas de escrever antigas e a esforçar-se por conseguir falar em linhas de telefone terríveis.”

“Facada nas Costas”

Ao mesmo tempo que os ocupantes dos escritórios da rua tinham uma reputação formidável por fazerem perguntas sérias e até insultuosas aos que ocupavam cargos de autoridade, eram igualmente conhecidos pela cultura de álcool nos pubs locais. Cada publicação tinha o seu bebedouro favorito, com os jornalistas do Daily Telegraph a frequentarem o King and Keys e os do The Daily Mirror a escolherem as suas pints no White Hart, que se tornou conhecido como o “Facada nas Costas”.

Outras tocas famosas pela bebida incluíam o escuro e cavernoso Ye Olde Chestire Cheese e o El Vino, que insistia em exigir que os homens usassem gravatas e que só começou a servir mulheres nos anos 1980. “Havia cá um tipo que saía para o pub e voltava à tarde, e eu costumava interrogar-me como é que ele conseguia”, diz Sherrif, que agora vai tentar agarrar-se a várias ideias para livros. “Essa cultura já desapareceu há muito tempo. É um ambiente ligeiramente mais estilizado do que costumava ser.”

Hoje em dia, há muito pouco a indicar o passado infame da rua. A sua igreja histórica, St Bride, continua a ser a casa espiritual do jornalismo britânico e foi onde Murdoch se casou, em Março, com a ex-modelo Jerry Hall. O edifício onde Sherriff e Smith trabalhavam é outro raro anacronismo, engalanado ainda com letreiros gigantes  com os nomes dos jornais que por ali passaram: Sunday Post, Dundee Courier e People’s Journal

“Temos estado muito conscientes de que somos os dois últimos jornalistas aqui”, diz Smith, que conta dedicar-se ao jornalismo desportivo. “Penso que é um triste pedaço de história. Amo a minha profissão, amo a história de Fleet Street e adoro ter trabalhado aqui.” Sherriff é mais optimista: “O jornalismo, como qualquer negócio, tem de evoluir. Acontece estarmos no fim de um parágrafo, mas há parágrafos e capítulos para serem escritos.”

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