Que futuro? Qual Europa?

Vistas as coisas, ainda teremos de agradecer à velha Inglaterra o ter impedido a formação do IV Reich.

O Reino Unido não deixou de pertencer à Europa (à Europa geográfica, claro, aquela península que se estende da Ásia para ocidente). O Reino Unido abandonou, sim, a União Europeia, uma convenção entre múltiplos países soberanos europeus com o objectivo de se conseguir uma unificação política num futuro mais ou menos longínquo.

Porque surgiu esta União? Por um lado, porque os países da Europa – que ficaram claramente enfraquecidos em resultado das guerras fratricidas da primeira metade do século XX – ambicionavam voltar à força e opulência do passado (e perceberam que só a união fazia a força) mas também porque os Estados Unidos queriam evitar a todo o preço que os soviéticos estendessem o seu domínio territorial até às margens do Atlântico. As estratégias convergiam. Tinha-se entrado na guerra fria.

Hoje, discute-se a Europa a propósito de tudo e de nada. Mas, curiosamente, raramente se explicita qual é a Europa que está em causa nestes apaixonados debates. Pensa a generalidade dos europeus que a Europa possui uma identidade cultural forte e contínua ao longo dos últimos três mil anos de história. Que a partir da herança grega a Europa se criou numa acumulação de novos saberes e de transformações sociais e tecnológicas sucessivas.

Nada de mais errado. A Europa não apresenta uma unidade histórica ou cultural. Ou antes, houve várias ‘Europas’ ao longo da sua evolução recente, que se sucederam assimilando alguns aspectos das anteriores para garantir a legitimidade do poder, mas cada qual criando valores adequados aos diferentes contextos da sua época.

Existiram até hoje, basicamente, seis Europas: três que o foram, uma que não chegou a sê-lo, outra que não passou de uma efabulação e uma última (a União Europeia) que pôs a carroça à frente dos bois, isto é, que colocou a finança e a economia a tutelar a política. Os resultados estão à vista.

A primeira Europa foi a Grécia clássica, da polis, dos mitos, da tragédia, da navegação e da filosofia (um tremendo corte epistemológico que abalou o primado do religioso). É a Europa de uma língua única, o grego. Quem a não falasse era considerado um bárbaro. No entanto, veio a sucumbir às hostes macedónicas.

A segunda Europa foi Roma, com o seu império centrado sobre o Mediterrâneo, a estrutura organizadora do seu imenso poder. No continente europeu (uma das três grandes regiões do planeta onde imperava) traçou Roma a sua própria fronteira – o ‘limes’ romano – o limite da eficácia das legiões na sua luta contra as tribos bárbaras a norte (do Reno e do Danúbio). Era um império de duas línguas: o latim e o grego, mas foi pela introdução do direito romano que as famílias senatoriais de Roma asseguraram o seu nome na história. Até à tempestade das invasões bárbaras.

A terceira Europa foi uma Europa virtual, visto não ter acontecido.

Mas esteve quase. Teria sido uma Europa árabe. A energia dos conquistadores árabes apenas soçobrou frente às muralhas de Constantinopla. Não fora este facto, a posse da rede de alianças e recursos que esta cidade imperial comandava, teria sido porventura suficiente para os fazer avançar pelos Balcãs até Itália, recriando aí, de novo, um império mediterrânico.

A quarta Europa foi a carolíngia, nascida da luta dos povos francos contra a investida dos árabes. Foi no contexto destes povos germânicos romanizados que a noção de Europa voltou a surgir, sendo Carlos Magno reconhecido como ‘pater Europas’, o imperador do Ocidente, em virtude do seu esforço congregador e unificador de um vasto território povoado por diferentes grupos ciosos da sua autonomia. A sua capital era em Aachen, (Aix-la-Chapelle para os franceses) e não em Roma. É, pois, uma Europa continental, de diversas línguas, articulando o geral e o local, que se vai expandindo para Sul, até às margens do Mediterrâneo, que passou a ser visto desde então como uma fronteira. Foi um império efémero, que deu lugar, entre outras estruturas, ao Sacro Império Romano-Germânico (o I Reich).

Houve depois as cruzadas, a invasão dos mongóis, a peste negra, o renascimento, os descobrimentos, a reforma protestante, a derrocada do sonho imperial de Filipe II, o tratado de Vestefália. O continente europeu tornara-se o berço dos senhores do mundo. Os embriões das novas Europas fabricavam-se então nas Américas, não já deste lado do Atlântico.

A quinta Europa foi pois uma efabulação, a Europa do Atlântico aos Urais, uma invenção de Pedro o Grande, Czar de todas as Rússias. Esta ‘Europa’ tinha por objectivo legitimar o esforço de modernização empreendido com vista a trazer a nação imperial russa para o convívio das potências europeias. O czar encomendou a feitura de mapas e cartas geográficas mostrando a unidade e continuidade dos territórios das margens do Atlântico até aos Montes Urais. Foi uma Europa que só existiu na melhor cartografia europeia pois as guerras que opuseram os europeus uns aos outros e em diversas combinações, durantes os séculos XVIII, XIX e XX, se encarregaram de a eliminar do reino dos vivos. Mas, como sabemos, apesar de tudo, o seu espectro foi oportunamente invocado na definição da estratégia para a guerra fria.

Não há, portanto, dúvidas acerca do carácter desta sexta Europa, aquela a que nos referimos nos debates apaixonados sobre a actual União Europeia. O seu momento fundador foi em Roma (pelo Tratado de Roma) tal como fora a Europa Carolíngia e a sua capital situa-se num polígono Bruxelas-Luxemburgo-Estrasburgo-Frankfurt (que contém no seu interior Aachen/Aix-la-Chapelle) bem longe da antiga urbe imperial.

Esta é a Europa que faz reviver uma matriz franco-germânica, uma Europa que olha para o Sul com pragmatismo e desconfiança (a livre iniciativa é obra do Norte) e o Mediterrâneo, sem dúvida, como uma fronteira; uma Europa que encara os seus domínios a oriente como vitais para conter o inimigo mais a Leste, fonte das ameaças territoriais que necessita domesticar.

É uma Europa das soberanias, da diversidade das línguas e das culturas locais. Mas com um gosto indisfarçado de normalização imperial quanto ao papel que reserva à finança na condução da economia. Após a queda do muro de Berlim acolheu, com incontida alegria, os impulsos globalizadores vindos do outro lado do Atlântico. Desde então, a actuação a este respeito da Comissão Europeia, o seu comité executivo, faz recordar uma etiqueta famosa dos tempos dos discos de vinil: ‘His Master’s Voice’.

Será esta a Europa do futuro? Esperemos que não. Não foi decerto a esta Europa que aspirámos e aderimos, depois da liberdade de Abril nos ter feito viver e respirar em democracia. Esta não é, definitivamente, a ‘nossa’ Europa. Há que a rejeitar.

Apresentam-se duas possibilidades para o futuro: a primeira, a de a União Europeia se tornar no cadinho de uma nova Europa (uma Europa que coloque o político acima do económico e faça da integração política o ponto principal do seu programa); a segunda, a de a União Europeia implodir (após 3 gerações – cerca de 75 anos) tal como aconteceu com a União Soviética. Há, pois, muito a fazer.

Após o “Brexit” e o que se lhe seguirá, o Reino Unido só por milagre conseguirá recuperar o prestígio que ostentou no passado. Refém dos Estados Unidos, tão cedo não funcionará de novo como um farol dos valores democráticos. Por outro lado, a França dificilmente se desenrodilhará da armadilha da união política das duas Alemanhas (da guerra fria) numa Grande Alemanha. É que está rendida à P.A.C. (a política agrícola comum) para garantir a sustentabilidade e a riqueza das suas regiões. Vistas as coisas, ainda teremos de agradecer à velha Inglaterra o ter impedido a formação do IV Reich.

Professor universitário, Físico

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