“Brexit”: a corrosão da democracia na União Europeia

Cabe aos Estados-membros negociar com o Reino Unido um “divórcio de veludo” vantajoso para todos.

A improvável vitória do “sim” sobre a saída do Reino Unido da União Europeia surpreendeu pela desproporção de forças entre os contendores do referendo.

O campo contrário à saída exibiu uma esmagadora vantagem política, financeira e comunicacional. Nele se aliaram o Chefe do Governo e uma larguíssima maioria parlamentar, os directórios partidários, uma parte das televisões, a City, as grandes multinacionais, a União Europeia, os principais responsáveis da NATO, do FMI e da OCDE e até o Presidente Obama. Do lado do “sim” militaram o UKIP com 1 deputado, 138 deputados conservadores e unionistas e 10 deputados trabalhistas, apoiados por empresas autóctones e a imprensa escrita de maior tiragem.

Os argumentos “ad terrorem” superabundaram: o Economist advertiu que as grandes empresas sairiam do país; o Chanceler do Tesouro traçou um cenário de apocalipse financeiro e ameaçou com um colossal aumento de impostos e cortes na saúde e educação; os gurus previram o colapso da libra, o desemprego e o empobrecimento; o governo escocês brandiu o separatismo; e Obama rematou que o País iria para o fim da fila nas relações comerciais com os EUA. Tão pouco faltaram os estigmas: os que defendiam a saída da União foram etiquetados de racistas, ignorantes, fascistas e hooligans e até o estranho e trágico assassinato da Deputada Jo Cox por um extremista louco, em tempo de vantagem do “Brexit” nas sondagens, foi usado como um projéctil emocional contra o “leave”

No final, David venceu Golias. Sob a liderança de uma contra-elite tribunícia, o inglês de meia-idade, patriota, médio-burguês ou operário, esquecido nas cidades do interior bateu o establishment, a elite académica e financeira, os jovens relativistas da era digital e o estrelato do futebol e artes. Num tempo de globalização em que o poder financeiro capturou a política, o “Brexit” representou uma inusitada vitória da “política pura” sobre o dinheiro.

É a imigração, estúpido. A vitória do “Brexit” tem três rostos: Nigel Farage, o carismático presidente do UKIP que alcançou a meta da sua vida; Boris Johnson, o culto e excêntrico ex-Presidente da Câmara de Londres que, no auge da sua vitória e popularidade, decidiu inesperadamente abdicar da corrida à sucessão de David Cameron; e Angela Merkel que, como admitiu Cameron, colocou o tema da imigração como primeiro alvo da campanha pela saída, ao abrir as portas da Europa a uma massa descontrolada de populações extra-europeias. Dada a estreita vantagem do “Brexit” (4%), poucos duvidam que a opção de permanência teria ganho, não tivesse a Chanceler alemã viabilizado um êxodo de proporções bíblicas, onde os migrantes económicos submergem os verdadeiros refugiados. Merkel não se limitou a detonar a vitória do “Brexit”. No dia em que ditou a política imigratória da Alemanha e tentou definir a da Europa, assinou a sua própria sentença de morte política e, quiçá, a do actual modelo da União Europeia, fazendo sair da garrafa o génio identitário das pátrias e nacionalidades.

A democracia e os seus comediantes. A degradação que o valor da democracia sofre no pensamento federalista europeu foi outra razão para o triunfo do “Brexit”, merecendo ponderação. No discurso de alguns “maus perdedores” afectos ao “remain”, os mais velhos, os menos cultos e os menos ricos ousaram decidir a sorte dos mais jovens, educados e prósperos, na lógica de que “este país não é para velhos” (e pobres). Faltou-lhes abolir o princípio “um homem um voto” e apelar ao retorno do voto múltiplo dos séc. XVIII e XIX, para atribuir mais sufrágios aos ricos, letrados e, já agora, aos mais jovens.

Enquanto alguns deliraram sobre a proibição de referendos na União Europeia, outros incitaram ao motim dos deputados britânicos contra a vontade popular, outros, ainda, recolheram assinaturas para a independência de Londres (nascendo o “Londonistão” do Mayor Sadik Khan) e outros, finalmente propuseram um novo referendo para anular o primeiro. Vingou, neste caso, a lógica algo soviética do precedente irlandês, que assoma alguns dirigentes europeus, de que se impõe realizar tantos referendos quanto os necessários para atingir o resultado desejado. Mas petição para um novo referendo entrou no domínio da comédia: 70.000 assinaturas foram invalidadas, já que alguns milhares eram oriundas do Vaticano e até da Coreia do Norte.

Depois do bullying. As reacções sulfurosas da desacreditada troika formada por Juncker, Schulz e Tusk ao “Brexit” fizeram temer o pior, já que indiciaram o retorno do sectarismo federalista do “salto em frente” sempre que deflagra uma crise europeia. Ora, com a agonia eleitoral dos partidos do “mainstream”, o crescimento de formações eurocépticas à esquerda e à direita e a criação de “forças de bloqueio” no grupo de Visegrado, qualquer estratégia de “mais Europa” resulta ser suicidária. Até o improvável Papa Francisco declarou que os povos europeus se não revêm no “ethos” integracionista da União e reclamam desta, uma maior devolução de poderes soberanos. Com a acalmia pontual dos mercados e a advertência da França e Espanha contra aventuras separatistas na Escócia, cabe aos Estados-membros negociar com o Reino Unido um “divórcio de veludo” vantajoso para todos. Para o efeito, será expectável que Theresa May (ou Andrea Leadsom) possuam a “endurance” necessária para uma longa negociação com Merkel que deixará de contar com um Hollande que, sem o saber, já deixou o mundo dos vivos.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa

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