"Brexit" também acerta no direito de autor

O processo de afastamento irá também ter consequências no que diz respeito à gestão do direito de autor.

Num acto representativo da sua vontade democrática, o povo da Grã-Bretanha votou a favor do abandono da União Europeia. Assumiu essa responsabilidade e agora terá de lidar política, social e financeiramente com as consequências do acto, sem a esperança de poder vir a realizar um segundo referendo. Sem precipitações ou dramatizações, o melhor para todas as partes será que o processo de saída tenha a celeridade que as dinâmicas desta índole consentem. É isso que a Comissão Europeia deseja e assim se deverá proceder, mesmo tendo em conta a complexidade de situações como a da Escócia. Aliás, neste processo está ainda quase tudo por contar e resolver, como adiante se verá.

A Grã-Bretanha, diga-se em boa verdade, nunca teve uma relação franca e saudável com a União Europeia e com o projecto que tem tentado unir uma boa parte da Europa. Foi sempre uma relação tensa e por vezes equívoca que por vezes fazia surgir o Reino Unido como um representante privilegiado e destacado dos interesses dos Estados Unidos nesta parte do mundo. Mas o processo de afastamento irá também ter consequências no que diz respeito à gestão do direito de autor. O Reino Unido é, legitimamente, uma potência neste domínio, graças a sociedades como a PRS, com 102 anos de existência e uma forte e inequívoca representatividade na área da música, e como a Directors UK, que agrupa os maiores criadores britânicos da área do audiovisual. Nunca dirigentes desta e de outras sociedades poderão afirmar que a Europa da União os subestimou ou marginalizou. Bem pelo contrário. Houve sempre a preocupação de se evitar a adopção de medidas que pudessem gerar crispação ou dúvida. Digo-o também na minha condição de dirigente de algumas destas estruturas directivas transnacionais.

Neste momento, sociedades como a PRS ou a Directors UK integram as estruturas de liderança da CISAC (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores), com sede em Paris, a Direcção do Grupo Europeu de Sociedades de Autores (GESAC), com sede em Bruxelas, ou o Comité Executivo da Writers and Directors Worldwide, com sede em Paris. Falo desta presença e representatividade, pois têm, sido factores de estabilidade e de alargamento do conceito moderno de gestão do direito de autor a outras áreas, outros públicos e outras disciplinas, Com a soberania que as caracteriza, estas sociedades geriram sempre com plena liberdade e rigor os seus interesses e negócios.

Porém, agora é justo que os seus parceiros europeus se pronunciem quanto à sua continuidade nestas estruturas directivas, sem que isso represente qualquer dúvida quanto à sua qualidade e representatividade. Não basta que os dirigentes britânicos digam que desejam permanecer, Deverão ser as equipas que integram a pronunciar-se livre e abertamente sobre o assunto, sem as inibições que decorrem das proverbiais diferenças entre ricos e pobres e entre os países do Norte e os do Sul.

Na verdade, também neste domínio o “Brexit” poderá ter coincidências, porque quem esteve, ou ainda está, assume responsabilidades e pondera as consequências dos actos de afastamento e ruptura que subscreve. Com efeito, nunca houve uma Grã-Bretanha mais europeia ou menos europeia que os restantes países que têm assumido este longo e complexo processo de convergência e cooperação.

Queixas de Bruxelas e da forma como a Europa da União funciona todos temos, desde logo, na área da Cultura, porque não é tolerável que o tantas vezes arrogante centralismo burocrático e institucional da União Europeia tudo decida em conformidade com interesses que se foram expandindo e consolidando. Esta Europa como está serve pouco e mal. Por isso está tanta gente cansada e revoltada. Por isso há tantos eurodeputados eurocépticos, incluindo os dos partidos ditos piratas que intervêm no debate e na decisão dos assuntos do direito de autor, facto no mínimo desconcertante e até surreal.

Disto podem os britânicos estar cansados, mas há quem esteja muito mais, sendo já um coro bem audível o que diz que esta Europa, para fazer sentido, precisa de ter outras regras, outra transparência, outro rigor e outra lógica política e financeira no seu processo de decisão. Não havendo significativa alteração nesta metodologia, é bem possível que outros países também venham a querer referendar a sua continuidade em Bruxelas.

Nesta fase, o que não é tolerável é que se prolongue irracionalmente a presença da poderosa “máquina” britânica na União, com comissários eurodeputados, assessores, dezenas de funcionários e tantos outros remunerados pelo orçamento comum. Quem sai sai e não deve prolongar com permanências que jogam contra o tempo e a razão um poder a que renunciaram com soberania democrática. Di-lo, com razão, Jean-Claude Juncker, e pelo menos nisto acerta.

O direito de autor e a sua gestão colectiva também vão reflectir este debate e esta urgência de clarificação, porque, estando sempre aberta a porta do diálogo enquanto a União Europeia existir, não pode manter-se escancarada a porta da decisão colectiva com a intervenção sectorial de quem decidiu partir. Nada deve tornar abrupto e irracional o processo de saída, mas ele deverá consumar-se com rigor, objectividade e firmeza. E a Comissão Europeia não poderá nunca esquecer que a cultura é um pilar essencial do processo de diálogo entre povos e nações tão diferentes e com uma tão notória necessidade de convergência e entendimento, sobretudo em tempo de incerteza e prolongado desencontro. Nunca isto foi tão urgente e claro. Também por isso valerá a pena recordar estas palavras de Eça de Queirós, falecido em 1900: “Hoje que tanto se fala em crise, quem não vê que, por toda a Europa, uma crise financeira está a minar as nacionalidades? É disso que há-de vir a dissolução”.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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