Um Inverno em pleno Verão

Sabemos que alguma coisa correu mal e não conseguimos arredondar as consequências

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Reinhard Krause/Reuters

24 de Junho de 2016. Quando acordei e li a notificação da BBC "Uk votes to leave European Union in historic referendum" ("Reino Unido vota saída da União Europeia em referendo histórico"), duvidei do meu inglês e achei que estava a ser tramada pelo sono. Decidi ler em bom português para dissipar dúvidas. Afinal não era burrice nem sono, era apenas a verdade. Foi aqueles dias em que acordamos e sabemos que o mundo também, mas diferente. Continuo a ouvir o eléctrico, o pavão da assembleia cantor exibicionista, o latir ansioso matinal dos meus cães do outro lado da porta. Mas o mundo mudou, ainda não sabemos muito bem como, mas mudou e muito.

Ainda incrédula, penso: é um processo livre e democrático, o povo britânico exprimiu o desejo de sair da União Europeia (UE). É com infelicidade que recebemos esta decisão mas respeitamo-la. É uma situação única e sem precedentes. Estamos de braços prostrados a aguardar com sobrancelhas arqueadas e olhares expectantes que o governo do Reino Unido concretize esta decisão do povo britânico. O artigo 50.º do Tratado da União Europeia define o procedimento a seguir caso um Estado-Membro decida sair da UE. Até esse processo negocial estar concluído, o Reino Unido continua a ser um membro com todos os direitos e obrigações que daí decorrem. De acordo com os tratados que o Reino Unido ratificou, a legislação da UE continua a ser plenamente aplicável ao e no Reino Unido até que este deixe de ser membro. Parece que estas palavras têm o efeito de um "Brufen" para as dores da ansiedade, mas não dura "ad eternum".

Sabemos que teremos de permanecer fortes e defender os valores essenciais da UE de promover a paz e o bem-estar dos seus povos. A união terá de ser a nossa bandeira, porém a bandeira já não é a mesma. O "Financial Times" chama ao "Brexit" o "divórcio mais complicado do mundo", estimando que as negociações para a saída do país podem levar algo como entre dois a dez anos. Um divórcio litigioso, com lavagem pública de muita roupa suja. E eu que punha tanta fé nas palavras musicais de Churchill: "É imperioso construir uma espécie de Estados Unidos da Europa. Só dessa forma centenas de milhões de trabalhadores poderão recuperar as alegrias e esperanças simples que dão sentido à vida. O processo é simples. Basta a determinação de centenas de milhões de homens e mulheres empenhados em fazer o que está certo em vez do que está errado para ter por recompensa felicidade em vez de sofrimento (…)".

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Sei que, daqui a muito tempo, alguém há-de estudar este dia nas escolas e que as crianças não irão perceber muito bem o que aconteceu. Hão-de esboçar pensamentos perplexos, perguntas claudicantes e reacções insurgentes. Tudo legítimo, as crianças terão razão.

Não foi a quinta-feira negra de Wall Street mas foi uma sexta envolvida em breu que fez sombra ao sol de Portugal e não só. Fez-me despertar com uma situação de orfandade decimal. Daquelas chatas, que nos faz pôr em causa se fizemos bem as contas porque o resultado tem uma vírgula com números infinitos. Sabemos que alguma coisa correu mal e não conseguimos arredondar as consequências. Acordei confusa e com prenúncios de tristeza. Uma tristeza decimal com uma gota de baba de Caim.

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