TTIP: a sigla da nossa inquietação

Quando o segredo calculista cerca e viola a soberania dos cidadãos, em nome dos interesses brutais e desumanizantes dos mercados, todos ficamos a perder.

A sigla TTIP pouco dirá à maioria dos cidadãos sobre cujas vidas irá ter inevitável influência, por abranger áreas cruciais de decisão política de comércio internacional e de intervenção financeira. Falemos em concreto, até para se perceber de que forma o Presidente Obama, já em fim de mandato, trouxe o assunto bem incorporado na sua pesada agenda política, em visitas recentes a Londres e a Berlim. A sigla corresponde a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, que começou a ser negociada em Julho de 2013, ou seja, há quase três anos e que, não obstante a quase invisibilidade deste processo complexo e abrangente, já implicou a realização mais de uma dezena de rondas negociais, das quais muito pouco se sabe, embora seja notória a diferença entre os dois mundos que se encontram em confronto na gestão transatlântica destes interesses. Basta recordar que os EUA e a União Europeia representam, conjuntamente, 60 por cento do PIB global e pouco mais de 40 por cento do comércio mundial de serviços.

Os negociadores têm tentado eliminar as dificuldades burocráticas que entravam as importações. O seu objectivo, entre outros igualmente intrincados, é a definição dos instrumentos arbitrais que permitam resolver inevitáveis conflitos e tensões entre os estados e los investidores. E que, num mundo em que operadores tão poderosos como a Google operam em todo o mundo a partir dos Estados Unidos, não se pense que a esfera do digital, da propriedade intelectual e das liberdades está ausente ou preterida.

A Comissão Europeia parece estar interessada em que a parceria venha a funcionar, embora o silêncio dos grandes dirigentes de ambos os lados (se porventura existem) se torne quase estridente em matéria tão sensível. Partidos e organizações como a Greenpeace têm vindo a denunciar os aspectos nocivos e preocupantes desta parceria. A Europa, em manifesta crise que a onda de refugiados/migrantes, as acentuadas viragens à direita e a tensão que envolve a gestão das fronteiras e dos conflitos que as envolvem não param de agravar, acredita muito pouco nos políticos e teme os efeitos resultantes de novas dinâmicas impostas à globalização que o mundo global acelera.

Até a Alemanha que, mesmo neste ciclo de crise, teria ganhos apreciáveis com a vigência da parceria vê os apoios a este processo negocial a diminuírem de mês para mês, sem esperança de inversão da tendência.

Um panorama assim traçado não parece ter melhores dias e perspectivas no horizonte, porque, na realidade, a Europa a que pertencemos e os Estados Unidos são terrenos muitos diferentes e em parte inconciliáveis. E a ainda está por saber o resultado do referendo que irá determinar a permanência ou a saídas da Grã-Bretanha da União Europeia, o que pode vir a reforçar uma das partes, sabendo-se como esse país mantém, desde sempre, uma privilegiada relação política e económica com Washington. A verdade é que, excluído este caso, todos os outros avolumam as incertezas sobre o que a Europa e o mundo nos reservam a curto, médio e longo prazo. E ainda está no horizonte político o nome de Donald Trump e toda a incerteza, ameaça e risco que ele pode vir a envolver. Os Estados Unidos, sob a batuta da importância dos mercados, revêem-se na pressa que Barack Obama tem de deixar este assunto encerrado antes de abandonar a Casa Branca. E a Europa em geral, a de Bruxelas e a restante, cada vez mais confusa e mutável, o que tem para opor a esta urgência mercantilista e invasiva que só muito dificilmente se compagina com uma cultura e tradição que dá força e peso ao Estado?

O TTIP pode vir a mudar profundamente a instável sociedade em que vivemos e não é o secretismo que envolve o tema que nos apazigua e torna confiantes.

Os defensores do acordo têm presente, com estatísticas em cima da mesa, que a assinatura do tratado pode render à Europa cerca de 120 milhões de euros e 95 milhões aos Estados Unidos. Mas nada é assim tão simples com parceiros desta envergadura. A Greenpeace Holanda teve acesso a documentos que entretanto divulgou e declara, sem margem para dúvidas, que “a democracia precisa de transparência” e que, também por isso, é tempo de suspender as negociações e de abrir o debate que, por diversas vias, tem vindo a ser adiado ou evitado. A ideia de se criar, desta forma, a maior zona de comércio livre do Atlântico Norte, pode encerrar ameaças e tormentos dos quais pouco ou quase nada se diz.

A European Digital Rights (EDRI), rede que envolve 33 organizações que lutam pela cidadania e pela defesa dos direitos humanos de 19 países europeus, analisou os documentos em debate e não hesita em declarar a este respeito: “Apesar das garantias dadas pela Comissão Europeia e pelo governo dos Estados Unidos, o modo como a negociação tem vindo a ser feita revela a inexistência de adequados níveis de transparência e os efeitos potencialmente negativos, incluindo os que envolvem direitos fundamentais e liberdades”. E acrescenta que o processo revela “falta de transparência e de respeito pelo valor da lei e da democracia, da protecção de dados, da privacidade, da propriedade intelectual e da neutralidade na Net, o que pode dar o direito a companhias estrangeiras de reclamarem compensações de governos, ignorando as regras da democracia o direito de legislar”. Dito desta maneira, fica claro que a protecção dos direitos dos criadores se encontra basicamente assegurada, devendo por isso as estruturas que os representam incluir este assunto nos seus debates regulares, para que o silêncio quase conspirativo que envolve e “protege” o longo processo negocial não venha a criar barreiras, fantasmas e ameaças intransponíveis. Por isso, quando ler a sigla TTIP, deve o leitor preocupar-se e exigir transparência e rigor neste debate, para que este mundo confuso e conturbado não se torne ainda mais inquietante. Quando o segredo calculista cerca e viola a soberania dos cidadãos, em nome dos interesses brutais e desumanizantes dos mercados, todos ficamos a perder. E o futuro também.

 

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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