O Prodígio Civilizacional da Deteção das Ondas Gravitacionais

Em 1907, dois anos após ter publicado quatro artigos notáveis, dois deles sobre a teoria da relatividade restrita que revolucionaram as nossas conceções sobre o espaço e o tempo físicos, Albert Einstein lançou-se num outro caminho de investigação. A relatividade restrita é baseada no princípio de que todos os referenciais de inércia são equivalentes para descrever os fenómenos físicos e formular as leis da física. Einstein considerou que esta preferência pelos referenciais de inércia não se justifica e procurou generalizar a equivalência a todos os referenciais, incluindo os que têm movimento acelerado e os que se encontram em campos gravitacionais.

Admitamos que nos encontramos num habitáculo sem comunicação com o exterior onde os corpos caem com uma aceleração de 9,81 metros por segundo quadrado (ms-2), tal como na Terra. Einstein postulou que não é possível saber se efetivamente estamos pousados na Terra ou a viajar num foguetão interplanetário em movimento acelerado com uma aceleração de 9,81 ms-2. Esta impossibilidade traduz um princípio de equivalência que constituiu o ponto de partida para a teoria da relatividade geral. Essencialmente Einstein concluiu que o campo gravitacional gerado por uma massa, por exemplo a Terra, altera as leis métricas do contínuo do espaço-tempo pelo que a geometria dos corpos rígidos deixa de ser a geometria de Euclides.

Claro que a geometria de Euclides continua a ser uma boa aproximação, exceto se a massa for muito elevada e estiver muito concentrada, como acontece num buraco negro. Um buraco negro é uma região do espaço onde a quantidade de matéria concentrada num volume pequeno é tão grande que o campo gravitacional assim gerado é tão forte que nem a luz, nem qualquer forma de informação, consegue sair dessa região. Com a teoria da relatividade geral Einstein chegou também à conclusão de que uma massa em movimento acelerado produz uma perturbação no espaço-tempo que se propaga sob a forma de ondas ditas gravitacionais.

Em 1915, Einstein, então professor na Universidade Humboldt de Berlin, enuncia a teoria da relatividade geral em várias comunicações à Academia das Ciências da Prússia e em 1916 escreve porventura o artigo mais criativo da sua carreira nos Annalen der Physik, intitulado “Os fundamentos da teoria da relatividade geral”. Quando muito mais tarde Leopold Infeld comenta a Einstein que a relatividade restrita teria sido formulada sem tardar por outro físico, caso ele não o tivesse feito, Einstein concorda mas refere logo de seguida estar convencido de que o mesmo não se teria passado com a relatividade geral, duvidando que alguém a tivesse formulado até então senão ele próprio. Estava pois plenamente consciente da grandeza da sua obra.

O momento histórico da publicação do artigo é dramático. A 1ª Guerra Mundial está no seu auge de ferocidade com o desencadeamento da guerra submarina sem restrições e a utilização massiva de armas químicas iniciada em 1915, designadamente o cloro, o cianeto de hidrogénio e o gás mostarda que mataram milhares de soldados. Em 1916 têm início as batalhas de Verdun e de Somme. Einstein sofre com a guerra, fica doente, visita a Suíça para ver os filhos e recuperar, toma partido nas suas cartas a Romain Rolland pelos países que se opõem à Alemanha, mas não abandona a Alemanha. Numa dessas carta Einstein diz “conhecer na Alemanha pessoas que na sua vida privada são guiadas por um altruísmo sem reservas mas que esperavam com a maior impaciência a declaração da guerra submarina sem restrições”. O sectarismo inerente aos ideais de natureza política contrastava com a linguagem e a narrativa universal da ciência.

Passados 100 anos no dia 14 de setembro de 2015, pelas 9:50:45 UTC, ondas gravitacionais provenientes de uma fonte situada no hemisfério sul da esfera celeste atravessaram a Terra e foram detetadas no hemisfério norte da Terra, primeiro em Livingstone no estado da Luisiana e 7 milissegundos depois em Hanford no estado de Washington. É nestes dois locais dos EUA que se encontram os laboratórios da experiencia LIGO (Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory) destinada a detetar ondas gravitacionais.

As perturbações geradas por estas ondas são em geral extremamente ténues e apenas grandes massas sujeitas a acelerações enormes alteram de modo significativo o espaço-tempo de modo a poderem ser detetadas. Quando as ondas gravitacionais atravessam a Terra provocam deformações no seu espaço-tempo que alternadamente diminuem e aumentam a distância entre pontos fixos. Os cálculos, baseados na relatividade geral, que fundamentaram a experiencia LIGO indicam que as ondas gravitacionais provocadas por grandes cataclismos cósmicos, como a colisão de dois buracos negros de grande massa, provocariam na Terra uma variação da distância entre dois objetos fixos da ordem de um milésimo do raio do protão, ou seja, 10-18 m. Detetar esta variação é um feito verdadeiramente notável que requer a ciência e a tecnologia mais avançada e uma extraordinária cooperação e organização humana.

Como se consegue detetar esta variação de comprimento tão pequena? Lançando um raio laser que é dividido e percorre dois braços (em cujas cavidades se fez um vácuo quase perfeito) com o mesmo comprimento de cerca de 4 km numa configuração em L, até se refletirem em espelhos colocados nas extremidades. Depois misturam-se de novo os dois raios. Dado que um raio laser é uma onda eletromagnética que se propaga sempre à velocidade da luz, se o comprimento dos dois braços não for exatamente igual devido à passagem de uma onda gravitacional, então os raios chegam com uma diferença de tempo ao ponto de partida e interferem. A análise desta interferência permite determinar a direção e a energia transportada pela onda gravitacional que atravessa o gigantesco L do LIGO. O principal problema é identificar um sinal fraquíssimo no inevitável ruído que a interferometria laser deteta. Tal foi conseguido simulando o que seria o sinal das ondas gravitacionais para o identificar no ruído por meio do auxílio de supercomputadores. Note-se que mesmo os objetos solidamente fixos à Terra têm vibrações provocadas por frequentes microssismos e até pelo rebentar das ondas oceânicas nas zonas costeiras. David Reitze o físico diretor do LIGO ao anunciar a primeira deteção de uma onda gravitacional designada GW 150914, afirmou que o “LIGO é o instrumento de medição mais preciso que jamais se construiu”.

O sinal da passagem da GW 150914 registado no interferómetro durou apenas 0,25 segundos e a análise da sua forma, por meio das equações da relatividade geral, permite caracterizar o evento que o originou. Trata-se de duas massas gigantes, uma com 29 vezes e a outra com 36 vezes a massa do Sol a girarem em torno uma da outra a uma distância de apenas 350 km. Os únicos objetos suficientemente compactos para poderem estar tão próximos são buracos negros estelares, remanescentes de estrelas de grande massa que terminaram a sua vida como supernovas. Os dois buracos negros aproximavam-se inexoravelmente um do outro e o que se detetou foi a colisão final e a formação de um único buraco negro com 62 massas solares. A energia correspondente às 3 massas solares em falta libertou-se do sistema sob a forma de uma onda gravitacional que atingiu a Terra em 14 de setembro de 2015. A análise dos dados também permite inferir que a fusão dos dois buracos negros deu-se há cerca de 1300 milhões de anos quando na Terra começavam a aparecer os primeiros organismos multicelulares com células eucarióticas. A onda gravitacional levou esse tempo a percorrer o espaço até atingir uma Terra onde a vida evoluiu imenso e deu origem a formas de vida inteligentes.

O evento GW 150914 constitui não só a primeira observação direta de ondas gravitacionais como a primeira observação indireta da fusão de dois buracos negros estelares. Estamos perante um verdadeiro prodígio civilizacional dada a complexidade e a precisão do sistema que permitiu detetar um sinal quase impercetível e a capacidade de o analisar por meio de uma teoria física também complexa que previu este tipo de fenómeno há um século. O prodígio também se manifesta pela capacidade e vontade política de financiar uma experiencia cujo objetivo final é provar uma teoria física por meio de um instrumento de observação que envolveu mais de 900 cientistas e cujo custo total foi já de 1100 milhões de dólares. O financiamento proveio em grande parte da National Science Foundation dos EUA, mas também de instituições de outros países, como o Reino Unido, a Alemanha e a Austrália. A Índia anunciou recentemente que vai financiar também um detetor no âmbito da rede LIGO.

Todos estes factos revelam a extraordinária capacidade humana para colaborar e cooperar em grandes equipas e de prosseguir com persistência um programa de investigação longo e incerto guiado pelo método científico e pela razão. Há outros domínios da atividade humana onde também surgem resultados notáveis mas onde o uso da mesma razão encontra outro tipo de limites. É nesses domínios que se exercem as convicções políticas, sociais e económicas, as quais por vezes se polarizam e confrontam tornando praticamente impossível a cooperação e a colaboração. Subjacente à extraordinária evolução cultural do Homo sapiens nos últimos cerca de 30000 anos, que agora nos permite detetar ondas gravitacionais provenientes dos confins do universo, há uma matriz biológica com expressões comportamentais, que constitui o nosso hardware, e permanece quase intacta desde há 200000 anos. Em termos de agressividade e conflito violento tudo continua a ser potencialmente possível apesar dos avanços extraordinários da ciência e da tecnologia.

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