Um solo de dança no olho do furacão

Primeiro acto de Faustin Linyekula enquanto Artista na Cidade: um solo para o bailarino português Miguel Ramalho, Portrait Series: I Miguel, em estreia no Teatro Camões.

Fotogaleria
Como Faustin Linyekula, Miguel Ramalho cresceu num bairro pobre e violento CLÁUDIA VAREJÃO
Fotogaleria
Miguel Ramalho, bailarino da Companhia Nacional de Bailado, foi até Kisangani, no Congo, para tomar contacto com a realidade de Faustin Linyekula CLÁUDIA VAREJÃO
Fotogaleria
O coreógrafo congolês Faustin Linyekula é o Artista na Cidade 2016 CLÁUDIA VAREJÃO
Fotogaleria
CLÁUDIA VAREJÃO
Fotogaleria
CLÁUDIA VAREJÃO

Antes sequer de Miguel Ramalho e Faustin Linyekula começarem a trabalhar o movimento que compõe o solo Portrait Series: I Miguel – em estreia esta quinta-feira e até dia 24 no Teatro Camões, em Lisboa, abrindo oficialmente a programação do congolês como Artista na Cidade 2016 –, cada um guiou o outro numa viagem ao sítio onde nasceu e cresceu. Primeiro, em Junho do ano passado, Miguel levou Faustin a conhecer o Vale da Amoreira, na Moita. “Era um bairro social bastante complicado na minha infância, bastante violento”, confessa o bailarino da Companhia Nacional de Bailado. Alguns meses depois, em Novembro, foi a vez de Miguel ser levado por Linyekula até Ubundo, só depois seguindo até Kisangani, cidade do Nordeste da República Democrática do Congo onde o coreógrafo fundou, em 2001, os seus Studios Kabako.

Essa troca inicial, defende o bailarino, serviu para que “os extremos das duas linhas se criassem” e pudessem, a partir desse ponto concreto, perceber o que os unia. “Ambos nascemos com raízes bastante pobres”, concretiza. “Claro que são circunstâncias diferentes – uma coisa é África, outra é a Europa. Mas crescemos em famílias humildes, em locais relativamente violentos e desenvolvemo-nos culturalmente muito mais do que o resto das nossas famílias.” Tudo isso está presente neste primeiro assomo da Portrait Series (que Linyekula planeia continuar a desenvolver), desde o momento em que, sentado numa caixa, Miguel termina o seu cigarro e se dirige para o rectângulo de terra que ocupa o centro do palco e simula o estúdio em Kisangani, um estúdio ao ar livre.

Miguel Ramalho começa por puxar de um cigarro porque era assim que arrancavam os seus dias de trabalho com Faustin no Congo, quando este lhe dizia que o bailarino só deveria começar quando se sentisse “confortável, em casa, em paz”. “Foi algo utilizado para a mecânica do trabalho, mas que acabou por ficar”, explica o bailarino. Portrait Series: I Miguel está polvilhado destas referências concretas a tudo aquilo que “casualmente, artisticamente ou de forma violenta” foi vivendo e integrando.

Calma e quietude
Se cada gesto em palco se encontra plenamente justificado no encontro com Faustin e na observação quotidiana da vida congolesa – Portrait Series: I Miguel incorpora movimentos que o bailarino via em pessoas com quem se cruzava nas suas caminhadas por Kisangani –, o rasto de agressividade descobre-se, por exemplo, quando Miguel dá voz ao “mzungu” [homem branco] que ouvia todos os dias no solitário percurso de 30 minutos a pé entre o hotel e os Studios Kabako. É um momento que documenta também a sua transformação: do visitante nervoso e intimidado pelas centenas de vozes que o lembravam que, ali, ele era diferente, ao estrangeiro que já não pedia desculpa pela sua presença e se sentia capaz de encarar aqueles olhares de “ódio, respeito, medo e agressividade” ditados pela História de uma ex-colónia.

A calma e a quietude que tomam conta da coreografia espelham a forma como Miguel foi vivendo a sua estada no Congo e foram depois trabalhadas como a imagem de um homem que se encontra no olho do furacão, sereno e pacificado, enquanto ao seu redor tudo colapsa. “Acho que foi um pouco essa a ideia do solo e a minha experiência em África”, diz. “Foi tudo tão violento e agressivo – num sentido psicológico –, tudo tão intenso, como eu nunca tinha vivido. Ao mesmo tempo sentia uma calma que não sinto aqui. Aqui, tudo é calmo, nada cheira a nada, ninguém se mexe, mas por baixo existe aquela camada de qualquer coisa que nos deixa tensos.”

A paz que Miguel Ramalho reivindica para o solo manifesta-se também através de um corpo que se abandona claramente e sem esforço a noções de liberdade e prazer físico só possíveis quando tudo o que está à sua volta parece perder importância. A dança é devolvida a um deleitado exercício individual, não deixando de representar, em paralelo, uma conversa do bailarino com o público, com Linyekula, com a música ao vivo do percussionista Pedro Carneiro, consigo mesmo e com as suas memórias. “Acho que é a primeira vez na minha carreira em que posso dizer que entro em palco e não tenho de impressionar ninguém, não tenho de fazer determinado tipo de movimentos de certa maneira”, confessa. “É como se estivesse sozinho a desfrutar do espaço e da música sem que ninguém me estivesse a observar.”

Encerrando o ciclo em que este primeiro capítulo da Portrait Series decorre, Miguel Ramalho abandona o rectângulo de terra, senta-se novamente no banco e puxa de um cigarro. Pouco depois, baixa uma tela onde será projectado o filme No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos, documentário de Cláudia Varejão que acompanha a vida da Companhia Nacional de Bailado ao longo de um ano. Mas a tela intromete-se também entre Miguel e o mundo onde esteve presente, como se vincasse que, apesar da cumplicidade e das amizades por lá nascidas e deixadas, em Kisangani foi apenas um visitante.

Sugerir correcção
Comentar