Macau está com pouca sorte ao jogo

As receitas dos casinos da região estão em queda há 19 meses consecutivos, tendo levado a um recuo no PIB nos últimos dois anos, algo que não tinha ainda acontecido sob administração chinesa. Apesar disso, as consequências na economia são limitadas.

Foto
Quebra das receitas em 2015 foi de 34% Nelson Garrido

Qualquer indústria que registe uma quebra anual de 34,3% receitas e perdas homólogas consecutivas ao longo de 19 meses parece atravessar graves dificuldades. É o caso do jogo em Macau, que arrastou em 2014 o território para a primeira diminuição do PIB desde a transição para a administração chinesa, em 1999, e que atingiu em 2015 mínimos de receitas de cinco anos. Mas esta indústria não é uma qualquer. E mesmo com uma descida expressiva, as receitas do sector situaram-se nos 230.840 milhões de patacas (26.627 milhões de euros).

O único território sob administração chinesa onde o jogo é permitido teve a actividade legalizada em 1847 pelo governo português da região, para fazer frente a dificuldades económicas causadas pela perda de importância do porto de Macau face a Hong Kong.

Mas a medida que viria a alterar a paisagem da região no século XX chegaria em 1961, com a decisão de abrir a concurso público a actividade. A concessão seria ganha no ano seguinte por um consórcio chamado Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), que teria o monopólio de exploração do jogo ao longo de quatro décadas. Entre os sócios fundadores da STDM contava-se Stanley Ho, que foi consolidando a sua posição como magnata dos casinos à medida que foi assumindo o controlo da empresa.

Com a saída do governo português de Macau, a administração chinesa do território decidiu, em 2001, abrir a exploração do jogo a mais actores, dando início à liberalizando ao sector onde hoje operam seis empresas, entre elas a STDM. 

Entre as ilhas de Taipa e Coloane, situadas a Sul da península, encontra-se o exemplo do desenvolvimento da região desde que esta mudou de administração. Nos anos 60, os portugueses começaram por construir um istmo entre as duas ilhas, mas o rápido crescimento da indústria do jogo depois da sua liberalização criou necessidade de espaço no território, tendo sido então criada a Faixa de Cotai, localizada entre as duas ilhas, numa área reclamada ao mar.

Foi nesta zona que a empresa norte-americana dona do Las Vegas Sands erigiu o Venetian, o maior casino do mundo, que tem as portas abertas desde 2007. É também para lá que está agendada a inauguração de vários novos projectos neste ano, como o MGM Cotai, o Wynn Palace e o Parisian, num período em que a indústria do jogo não apresenta o maior fulgor.

Origens
Investigador no Instituto de Hong Kong de Estudos sobre a Ásia e Pacífico, Victor Zheng explica ao PÚBLICO por e-mail que a campanha contra a corrupção desencadeada por Xi Jinping será mesmo o “factor mais decisivo” a pesar na descida das receitas dos casinos.

O académico, co-autor do livro Gambling Dynamism: The Macao Miracle (Springer, 2014), lembra que a contracção das economias da China e de Hong Kong deve ser também levada em conta, uma vez que o grosso dos turistas que visita Macau (87,8% em 2014) provém desses territórios. 

A conjugação de factores é mais complexa que isso. A campanha anticorrupção de Pequim e a queda de turistas provenientes da China juntam-se à desvalorização do yuan e levam a um maior controlo do fluxo de capitais, o que penaliza o sector.

Mas para se perceber o que levou a quebras tão acentuadas na receita dos casinos é preciso entender primeiro como está estruturada esta actividade no antigo território português.

Uma fatia considerável das receitas obtidas pelos casinos é conseguida através do mercado VIP, mas o segmento está em queda. Segundo dados da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) do território, em 2014, 60,5% das receitas dos casinos era relativo a este mercado, tendo descido de 73% em 2013.

Por oposição ao mercado de massas – que é sustentado, essencialmente pelo turismo – este tipo de mercado é alimentado pelos operadores de junkets. Os grandes apostadores vêem limitadas as quantias que podem movimentar entre Macau e China, pelo que os operadores assumem o papel de mediadores entre os jogadores e os casinos.

Os junkets emprestam dinheiro em Macau e vão cobrá-lo à China, recebendo uma comissão conforme a sorte do apostador, pelo que um período de turbilhão económico, como o que a segunda economia mundial tem atravessado, causa dificuldades na recolha das dívidas. Victor Zheng caracteriza este mercado como sendo “facilmente afectado pela atmosfera político-económica”, o que ajuda a explicar a queda significativa.

Pelas mesmas razões, há menos turistas chineses entrar na região administrativa especial, o que arrasta igualmente o mercado de massas para baixo.

Austeridade macaense
Se as consequências desta conjuntura no dia-a-dia dos habitantes são limitadas, houve uma palavra que deu entrada no léxico mediático macaense em 2015: austeridade.

As receitas dos casinos no único território sob administração chinesa em que o jogo é permitido começaram a derrapar em Junho de 2014, e o último mês de Dezembro representou o décimo nono mês em quedas homólogas, naquela que é a pior série de que há registo.

Nos primeiros três trimestres de 2015, o Produto Interno Bruto (PIB) de Macau sofreu uma contracção de 25% em termos reais, arrastado pela queda das receitas do jogo, a principal actividade económica da região.

Dados do segundo trimestre de 2015, os últimos disponíveis, revelam uma queda de 38,2% na receita fiscal obtida através do sector do jogo para 23,11 mil milhões de patacas (cerca de 2,66 mil milhões de euros), numa indústria sobre a qual é cobrado um imposto directo de 35%.

Em Setembro, o governo da região implementou medidas de controlo orçamental para fazer face a uma receita fiscal obtida com a actividade do jogo abaixo de um limite previamente estabelecido. O executivo regional liderado por Fernando Chui anunciou medidas como o congelamento de 5% das despesas orçamentadas para a compra de "artigos para o funcionamento diário dos serviços ou de bens consumíveis" e de 10% do orçamento para investimento, de modo a atingir uma poupança avaliada em 1,4 mil milhões de patacas (cerca de 155 milhões euros) em 2015.

Porém, a definição de austeridade pouco coincide com a aplicada em Portugal durante o período de intervenção da troika de credores. Macau não tem dívida externa, nem défice. As contas públicas registaram um superavit orçamental de 25,42 mil milhões de patacas (2,92 mil milhões de euros) na primeira metade do ano e, apesar de a margem ter diminuído, as seis operadoras de casino continuam a registar lucro. O governo não cortou apoios nem subsídios e os funcionários públicos vão ser aumentados 2,5% em Janeiro (a taxa de inflação fixou-se em 4,71% nos doze meses terminados em Novembro).

O director do jornal Tribuna de Macau, Sérgio Terra, explica ao PÚBLICO que, na prática, a actual conjuntura não tem grande impacto no dia-a-dia dos cidadãos. Houve um abrandamento do ritmo de inflação dos preços, o que acaba por tornar o custo de vida mais “acessível”, depois de anos em que o desenvolvimento da indústria do jogo arrastou os preços para níveis muito elevados.

 “A curto prazo, a queda das receitas do jogo não deve afectar a economia da região nem o dia-a-dia dos cidadãos”, avalia Victor Zheng. No entanto, o investigador ressalva que, caso o “fenómeno” se prolongue, pode ter efeitos no desempenho global da economia e no emprego, ainda assim não prevendo que a situação possa provocar “uma crise política grave” no território.

No universo empresarial, os mais afectados são os que trabalham directamente com o sector do turismo. Fernando Marques, empresário português em Macau com negócios no ramo alimentar, conta que as vendas para as unidades hoteleiras caíram cerca de 20%. Apesar disso, o empresário explica ao PÚBLICO que o negócio continua a ser rentável, tendo no entanto que procurar novas formas para aumentar a margem de lucro, como a substituição de ingredientes por outros mais baratos.

Diversificação de economia
Na cerimónia em que se assinalaram os 15 anos da transferência do território para administração chinesa, em Dezembro de 2014, o presidente Xi Jinping instou a região a diversificar a economia e a pôr ordem no sector do jogo.

Passado um ano – o mais penalizador para a indústria do jogo, pelo menos desde 1999 – Fernando Chui veio reiterar o alinhamento com Pequim, anunciando que irá iniciar um estudo sobre a diversificação da economia para enviar uma proposta ao governo central. Isto depois de, no início do ano, se ter comprometido em apertar a regulação no sector do jogo.

No entanto há dois constrangimentos: área e população. Com pouco menos de 30 quilómetros quadrados e 636 mil habitantes (em 2014), estes dois indicadores sobre o território representam um entrave à reestruturação da economia, tal como é desejada por Pequim.

Victor Zheng considera mesmo que falar nisso “não faz muito sentido”, pois os dois factores fazem com que se torne “muito difícil” diversificar. Para o académico, a melhor solução passaria por fortalecer o sector do jogo, utilizando as poupanças orçamentais para minimizar o impacto durante os períodos mais difíceis.

No entanto, 2016 parece trazer perspectivas de recuperação. A agência de rating Fitch, que apontava para uma contracção de entre 34% e 35% nas receitas do jogo em 2015, estima que esta queda seja mais moderada este ano, fixando-se em 6%.

Fernando Marques acredita que o mercado “volte a estabilizar” em 2016 e que essa é a igualmente a perspectiva das pessoas do sector, como directores de hotéis e chefes de restaurantes com quem vai falando.

Apesar da crise, a abertura de novos casinos na Faixa de Cotai promete dar um novo fôlego à indústria. Em Dezembro, a queda registada nas receitas (21,2%) já foi a menor desde Janeiro de 2015, o que pode indiciar um início de normalização.

Os próximos meses podem servir de barómetro ao que aí vem, com o aproximar do período do ano novo chinês, em que as receitas do jogo são tradicionalmente mais elevadas. Alex Bumazhny, analista da Fitch para o sector, aponta para que este “comece a estabilizar” em 2016, mas a agência ressalva que as perspectivas dependem das políticas de Pequim e do desempenho do segmento VIP.

Sugerir correcção
Comentar