Há dois caracóis que são únicos da Serra da Arrábida

É uma serra tão especial que tem os seus próprios caracóis: duas espécies. Quantos animais existem? Qual é a sua distribuição? Como é que lá foram parar? Tudo isto está em estudo.

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O caracol Candidula setubalensis, uma das duas espécies que só existem na Serra da Arrábida Gonçalo Rosa
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O caracol Candidula setubalensis José Mendes Simões
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O caracol Candidula arrabidensis Gonçalo Calado
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O caracol Candidula arrabidensis, descoberto em 2014 Geraldine e David Holyoak
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O caracol Candidula arrabidensis Geraldine e David Holyoak

Chama-se Candidula arrabidensis e é uma espécie nova de caracol, descoberta há cerca de um ano por um casal de cientistas britânicos residente em Portugal, Geraldine e David Holyoak. Encorajados por já terem encontrado uma nova espécie de caracol na região de Leiria em 2008, resolveram fazer um estudo detalhado dos caracóis do género Candidula em Portugal. E foi assim que descobriram que um pequeno caracol que vive na Serra da Arrábida era diferente dos outros caracóis de Portugal — e que só existe neste local.

Porém, o Candidula arrabidensis não é o único caracol exclusivo da Arrábida. Há um outro, o Candidula setubalensis, que tinha sido descrito no século XIX por Louis Pfeiffer, um médico e naturalista alemão. Entre muitas plantas e moluscos que descreveu durante as suas expedições científicas pela Europa e pelas Antilhas, Louis Pfeiffer descobriu este caracol muito especial no próprio castelo de Setúbal e que, tal como Candidula arrabidensis, tem menos de um centímetro de diâmetro, mas a concha é esculpida.

Nos últimos tempos, têm ido biólogos para o terreno estudar atentamente as duas espécies de caracóis. Querem conhecer a sua área de distribuição e o seu estatuto de conservação. “Espécies com distribuição limitada podem correr maiores riscos de conservação”, diz Gonçalo Calado, um dos líderes do projecto.

Gonçalo Calado é biólogo marinho e especialista em caracóis marinhos, mas quando foi desafiado pelo biólogo Francisco Moreira a desenvolver um projecto de investigação que incluísse os alunos começou a estudar caracóis terrestres. Ambos são docentes da Universidade Lusófona, em Lisboa. “A ideia foi do Francisco Moreira. Queríamos encontrar um trabalho que envolvesse os nossos alunos num verdadeiro trabalho de investigação e que produzisse conhecimento”, conta Gonçalo Calado. “Seria mais difícil estudarmos caracóis marinhos nas aulas, teríamos de fazer mergulho”, diz, rindo-se.

Assim, a equipa que está a fazer os estudos de campo não é um grupo comum de investigadores. É formada por estudantes e professores da licenciatura de Biologia, e o trabalho está integrado nas suas aulas de Ecologia e de Biologia da Conservação.

Numa primeira fase do estudo, foi verificada a área de distribuição dos dois caracóis, por toda a zona do Parque Natural da Arrábida, desde Palmela até ao Cabo Espichel, em quadrículas de dois por dois quilómetros. “Andámos todos à procura, nos muros, por debaixo das pedras...”, conta Gonçalo Calado. “Procurámos caracóis vivos ou mesmo só as conchas, que podem permanecer muito tempo em zonas calcárias como a Arrábida — até dezenas de anos.”

Confirmaram que a “nova” Candidula arrabidensis existe por toda a serra, mas tiveram uma surpresa: a Candidula setubalensis já não vive na zona onde foi descrita, o castelo. “Agora já nem conchas lá havia”, lamenta Gonçalo Calado. “Por agora, sabemos que a área de distribuição de Candidula setubalensis se estende por uma fina faixa de 20 quilómetros — desde o Portinho da Arrábida até enseada da Baleeira, quase no cabo Espichel. A faixa é muito fina, às vezes com menos de 100 metros de largura, mas estamos a aferir tudo.”

Depois de determinadas as áreas dos dois caracóis, passou-se ao estudo da sua abundância, para determinar o estado de conservação. “Fazemos quadrados de cinco por cinco metros. Passamos a área a pente fino, levantamos todas as pedras...”

Mais respostas da genética
Este tem sido um autêntico trabalho de detectives, a que nem o facto de os animais serem tão pequenos tem sido um obstáculo. “Depois de o olho estar treinado, não é difícil.” Mas nem sempre é fácil identificá-los. “Com a Candidula setubalensis não há confusão possível, tem aquelas riscas a que chamamos ‘costelas’. Mas quando se trata da Candidula arrabidensis pode ser difícil. Em caso de dúvida, tiramos fotografias aos animais vivos e levamos as conchas para analisar com detalhe.”

A Candidula setubalensis tem uma concha achatada e raiada, uma característica rara entre os caracóis. Em Portugal só se conhece mais outra espécie com uma concha semelhante — a Candidula coudensis, mas vive a mais de 150 quilómetros dessa zona, no vale do Couda, na região de Leiria.

Já a Candidula arrabidensis tem a concha arredondada que é mais comum e talvez por isso só agora tenha sido identificada como uma nova espécie. “Era confundida com uma outra espécie. Só quando Geraldine e David Holyoak estudaram a anatomia interna dos caracóis é que perceberam que estava ali uma espécie diferente”, refere o biólogo.

“Para identificar uma espécie, não basta olhar para as conchas. Devem estudar-se características coerentemente diferentes entre os grupos”, explica Gonçalo Calado. Um dos aspectos muito usados para reconhecer espécies é a forma dos órgãos reprodutores, pois as características associadas à reprodução evoluem rapidamente e estão ligadas à impossibilidade de os grupos se cruzarem e terem descendência — que é justamente um critério para definir espécies diferentes.

Com estudos genéticos poderá avançar-se mais. Gonçalo Calado e Francisco Moreira estão a colaborar com uma equipa da Universidade do Algarve para estudar as diferenças entre os genes de todas as espécies de caracóis do género Candidula de Portugal. Estes estudos permitirão descobrir as relações de parentesco entre as espécies, quando é que se separaram e se há espécies mais antigas do que outras. Poderão até desvendar o mistério do parentesco entre os dois únicos caracóis de concha raiada de Portugal, o Candidula setubalensis na Arrábida e o Candidula coudensis na zona de Leiria.

Pensa-se que o facto de haver espécies únicas da Serra da Arrábida se deva ao maciço calcário da região. Enquanto alguns gastrópodes estão por todo o país, como a conhecida caracoleta Helix aspersa, muitas espécies só existem em regiões calcárias. “Onde há calcário há caracóis. Achamos que dependem do calcário para formarem a concha, dada a associação que se verifica entre a distribuição das espécies e os maciços de calcário. E, por outro lado, porque em regiões de terra ácida a concha se dissolve.”

Situada na península de Setúbal, a Serra da Arrábida tem características naturais únicas, o que justifica a sua conservação. Já nos anos 1940 o poeta Sebastião da Gama lançou um apelo para a defesa desta área natural, com repercussões que levaram à criação da Liga para a Protecção da Natureza. Em 1976, foi criado o Parque Natural da Arrábida, que hoje inclui a serra e a zona marítima desde a Arrábida até ao cabo Espichel.

Porém, o parque está sujeito a grande pressão humana: a sua candidatura a Património da Humanidade da UNESCO foi retirada em 2014 devido a um parecer da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), que, entre outras considerações, referia a falta de integridade da região, nomeadamente a existência de pedreiras, construção e pressão turística. Além da construção, os incêndios constituem a maior ameaça para as espécies da Arrábida.

“Há espécies de caracóis que vivem em áreas degradadas, o que não é o caso das espécies agora em estudo, que só encontramos em áreas mais naturais.” Mas estas espécies da Arrábida são mais sensíveis. “As espécies restritas a um local correm maiores riscos de extinção. Temos visto isso noutras regiões de Portugal. Há espécies de caracol que deixámos de encontrar e pensamos que desapareceram para sempre.”

O caracol Candidula setubalensis é considerado uma “espécie ameaçada e em perigo” pela IUCN. “Queremos aferir o estatuto de conservação do Candidula setubalensis e propor um estatuto para Candidula arrabidensis [que ainda não tem]”, diz Gonçalo Calado. “Todos somos os fiéis depositários da biodiversidade. Mas para a preservar temos de a conhecer. Como os caracóis não têm a visibilidade dos pandas ou linces, não há dinheiro para os estudar e proteger.”

Até agora estão identificadas 125 espécies de caracóis terrestres e de águas doces e salobras de Portugal continental, muitas descritas por Geraldine e David Holyoak, já reformados e a viver em Portugal desde 2009. Têm ainda trabalhos sobre caracóis de Espanha, França, Grã-Bretanha, Irlanda, Marrocos ou Argélia. Agora vão voltar a Marrocos.

Texto editado por Teresa Firmino

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