Morreu Rolanda de Matos, a decana do estudo dos caracóis portugueses

Era considerada a maior especialista em caracóis de Portugal. No ano passado, aos 88 anos, publicou um atlas sobre estes moluscos, um projecto em que trabalhou mais de 20 anos. Na varanda de casa tinha um vaso onde vivia uma família de caracóis.

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Rolanda de Matos (1926-2015): a bióloga numa iniciativa de divulgação científica numa escola em Lisboa, em 2008 Raquel Gaspar
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A bióloga numa iniciativa de divulgação científica na FIL, em 2008 Joana Barros/Associação Viver a Ciência
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A bióloga num passeio a S. Pedro do Sul, em 2014 Mónica Albuquerque

Actualmente, quase metade dos cientistas em Portugal são mulheres. Mas esta é uma realidade recente. Até há poucas décadas, eram raras as mulheres que seguiam carreiras de investigação no país. Rolanda Albuquerque de Matos foi uma dessas mulheres — licenciou-se em Ciências Biológicas na Universidade de Coimbra em 1947, onde iniciou um percurso de investigação, que ao longo das décadas acompanhou as mudanças nas universidades, na ciência e na sociedade. Morreu de cancro no último dia de Novembro, deixando mais de 70 publicações científicas, em particular no campo da genética e sistemática dos caracóis terrestres de Portugal.

Nascida em 1926 em Queluz, em 1943 ingressou na Universidade de Coimbra. A primeira mulher em Portugal a doutorar-se em biologia em Portugal, Seomara da Costa Primo, tinha-o feito apenas um ano antes de Rolanda de Matos ter ido para a universidade. Depois da licenciatura em 1947, foi responsável por aulas práticas de zoologia e antropologia. E foi assistente de José Antunes Serra, uma referência na biologia em Portugal no século XX, com quem colaborou cientificamente e veio a casar.

Em 1954, estabeleceram-se ambos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Tendo trabalhado aí durante décadas, Rolanda Matos não fez parte do quadro da universidade, segundo disse Rolanda de Matos várias vezes ao biólogo Gonçalo Calado, especialista em moluscos da Universidade Lusófona.

Desenvolveu trabalhos em áreas variadas — antropologia, zootecnia, biologia celular, entre outras —, uma característica dos investigadores da época. Nos anos de 1950 publicou um livro sobre os peixes de água doce de Portugal: “Um volume extraordinário, ilustrado, de mais de um milhar de páginas. Daria para duas ou três teses de doutoramento, nos dias que correm…”, conta Pedro Callapez, investigador da Universidade de Coimbra.

Durante décadas, Rolanda de Matos e José Serra trabalharam no Centro de Genética e Biologia Molecular da FCUL, e é aqui que Rolanda de Matos iniciou os seus conhecidos estudos sobre caracóis terrestres. Entre 1974 e 1994, determinou os genes responsáveis por 22 características de cor e ornamentação das conchas de Helix aspersa, a conhecida caracoleta. Em estudos meticulosos, fez cruzamentos entre caracoletas ao longo de gerações. “Foi um trabalho hercúleo, feito à maneira antiga, em que a investigação se processava na maior seriedade e demorava o tempo que tivesse de demorar, sem a necessidade e a pressão de se avolumarem publicações em revistas internacionais, como acontece nos dias de hoje”, frisa Pedro Callapez.

Mais tarde, doou essa colecção de conchas de Helix aspersa ao Museu da Ciência da Universidade de Coimbra e que foi apresentada ao público em 2009, na exposição Darwin 150-200. “Era uma forma muito visual de mostrar a variação genética de forma sistemática”, considera Paulo Gama Mota, da Universidade de Coimbra, que na altura era o director do museu e foi o comissário da exposição. “É importante os investigadores oferecerem as suas colecções aos museus.”

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Joana Barros/Associação Viver a Ciência

Depois do falecimento de José Serra, em 1990, Rolanda Matos prosseguiu os seus estudos em caracóis na FCUL ainda durante vários anos, terminando os projectos que tinha em mãos. “Depois de sair da FCUL, começou a fazer a investigação que era possível fazer ‘em casa’ — começou a trabalhar em sistemática de caracóis terrestres portugueses. O objectivo era fazer um atlas”, conta a bióloga Mónica Albuquerque, que trabalhou de perto com Rolanda de Matos, ocupando-se da parte fotográfica do atlas.

Ao boletim informativo Bio Logos, dos alunos de biologia da Universidade Lusófona, em Lisboa, Rolanda de Matos contou em 2007 como se tinha interessado por esta questão: “Nas listas internacionais de espécies de gastrópodes para vários países, na parte sobre Portugal vinha sempre ‘não se conhece’. E aquilo incomodava-me bastante e eu dizia ‘isto não pode ser’”.

Dedicou-se a este projecto durante quase 20 anos. O Atlas dos Caracóis Terrestres e de Águas Doces e Salobras de Portugal Continental foi publicado em 2014, numa edição de autor, quando Rolanda de Matos tinha 88 anos. Esta é a única obra actualizada sobre as 125 espécies portuguesas, com a descrição, a área de distribuição e fotografias de cada uma delas ao longo de mais de 250 páginas. Hoje vai na segunda edição.

“O atlas dos caracóis terrestres e de água doce de Portugal continental é um instrumento de trabalho fundamental, não só para os cientistas dedicados aos vários aspectos do estudo deste grupo taxonómico, mas também para as entidades que têm responsabilidades na gestão e conservação da natureza e biodiversidade”, considera Gonçalo Calado. “É a melhor base de trabalho que temos para identificar espécies deste grupo que necessitam de medidas legais de protecção, para que não se extingam por responsabilidade de actividades humanas.”

Uma família de caracóis na varanda

Para elaborar o atlas, correspondia-se com colaboradores e passava temporadas no Porto e em Coimbra, onde estudava as colecções dos museus das universidades, tendo também organizado algumas dessas colecções. “Cultivava o mérito. Com aquela idade, mantinha-se com um pensamento agudo e muito claro. Era também muito directa”, recorda Paulo Gama Mota.

“Conhecia-a quando ela tinha quase 80 anos. Tinha tanta energia, e estava sempre disposta a estudar tudo até ao fim”, acrescenta Mónica Albuquerque, actualmente bióloga na Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental.

“Tinha na varanda um vaso onde vivia uma família de caracóis. Ela dizia que estavam lá desde os anos 1930-1940, quando se distribuía água em Lisboa vinda de Caneças, porque era uma espécie que não existe em Lisboa, mas que existe em Caneças. Não plantava nada nesse vaso para não os perturbar”, recorda Mónica Albuquerque. “E se um investigador lhe enviava um animal vivo, punha-o numa caixinha e dava-lhe de comer, não o matava. Também não comia caracóis. Adorava chocolate – achava imensa graça àqueles chocolates em forma de concha...”

A sua casa era também o seu retrato: “Tinha uma sala de trabalho com computador e mesa grande para trabalhar. Na despensa não guardava comida, tinha caixas e caixas das suas colecções de conchas de caracóis.”

Era entusiasta em transmitir os seus conhecimentos. Por isso, estava sempre disponível para apoiar outros cientistas em projectos de investigação sobre caracóis terrestres, além de participar também em projectos de divulgação científica.

Por exemplo, colaborou num projecto de divulgação em jardins-de-infância no Algarve, no ano lectivo de 2008-2009, e correspondeu-se com as crianças: “Cara D. Rolanda, somos os meninos do jardim-de-infância de Estômbar. Queremos saber coisas sobre as lesmas (…), fomos à Internet e não conseguimos saber tudo o que queríamos. Obrigada pela sua ajuda”, ouve-se num vídeo sobre o projecto de divulgação científica Sair da Concha, da Associação Viver a Ciência. As crianças acrescentaram ainda que queriam saber se as lesmas comiam os ovos dos caracóis. E ela respondeu-lhes que sim, que os comiam.

De si própria, não falava muito. “Era muito reservada. Estranhou quando a quisemos entrevistar para o boletim dos estudantes de biologia”, conta Mónica Albuquerque, que nessa altura era aluna de biologia da Universidade Lusófona. No entanto, estava sempre disposta para falar dos estudos do marido. Quando, por exemplo, o biólogo Luís Vicente, da FCUL, fez um trabalho sobre a obra de José Serra, ela deu-lhe uma grande ajuda. “Tinha uma admiração compulsiva pelo professor Serra, parece-me que foi um imenso amor de uma vida inteira desde Coimbra.”

Nunca parou. Em Maio de 2014, ainda foi com Gonçalo Calado e Mónica Albuquerque a S. Pedro do Sul. Queria procurar uma espécie rara de caracóis. Já depois de estar doente, no hospital apontou num mapa os locais na Serra da Arrábida onde Gonçalo Calado deveria ir para procurar uma outra espécie muito difícil de encontrar. Por sua vontade, as suas colecções pessoais de conchas vão ser doadas aos museus das universidades de Coimbra e do Porto.

Texto editado por Teresa Firmino

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