Arguida do caso dos vistos gold acusada de manipular concursos

A acusação dos vistos gold conhecida na semana passada descreve ao pormenor como uma vogal da Cresap, a Comissão de Recrutamento para a Administração Pública, terá manipulado dois concursos para o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado.

Foto
MP revela que concursos públicos foram feitos à medida de António Figueiredo, presidente do IRN Enric Vives-Rubio

As quase 30 páginas da acusação do processo dos vistos gold com os factos imputados a Maria Antónia Anes, que era secretária-geral do Ministério da Justiça e vogal não permanente da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (Cresap), parecem mais um manual sobre como apenas um membro de um júri pode manipular o concurso para um alto cargo na Administração Pública.

O alegado favorecimento do então presidente do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), António Figueiredo, candidato em dois concursos sucessivos para esse mesmo cargo e outras situações similares em que a arguida terá estado envolvida valeram a Maria António Anes a acusação de quatro crimes: dois de corrupção e dois de tráfico de influência.

Segundo a acusação, a relação de amizade entre Maria António Anes e António Figueiredo remontará a 2004, quando a arguida era directora do centro de formação e António Figueiredo director dos Registos e Notariado. Desde então visitavam-se com frequência e passavam férias juntos, com as respectivas famílias.

Concurso feito à medida é uma expressão que cai que nem uma luva no caso, já que os investigadores encontraram emails entre a vogal da Cresap e o então presidente do IRN que mostram que o próprio candidato terá ajudado a definir o perfil do cargo a que concorreu em Novembro e Dezembro de 2013.

Incumbida pela então ministra da Justiça de elaborar os documentos que acompanhariam a abertura do concurso, nomeadamente o perfil de competências, a então secretária-geral do ministério terá enviado a 10 de Outubro desse ano um email a António Figueiredo, intitulado IRN Presidente - MJ Requisitos especiais do cargo a concurso. O objectivo, lê-se na acusação, era que “terminasse o respectivo preenchimento de acordo com o próprio perfil assim adequando os requisitos do concurso ao seu curriculum”.

A resposta chegou seis dias mais tarde, igualmente por email, com a sugestão de requisitos como “experiência comprovada de colaboração com outros países, especialmente com países membros da CPLP” ou experiência em “projectos de desmaterialização/simplificação no domínio específico dos registos e notariado”. As sugestões acabaram por ser quase integralmente incluídas nos requisitos que Maria Antónia Anes enviou para o presidente da Cresap, João Bilhim, a solicitar a abertura do concurso, publicada a 7 de Novembro de 2013.

Antes ainda dessa data, António Figueiredo já destacara uma equipa com três conservadoras e duas secretárias para prepararem a sua candidatura “dentro do horário de serviço destas e nas instalações do IRN”. Maria Antónia Anes ficaria de analisar os elementos e corrigi-los, antes destes serem entregues. Isso mesmo terá acontecido a 15 de Novembro, quando a vogal recebe um email de uma das secretárias de Figueiredo com o questionário de auto-avaliação e o curriculum deste para analisar. Mas surge um contratempo: os documentos seguem em PDF, o que não lhe permite fazer correcções. Manda, por isso, um SMS a Figueiredo pedindo-lhe que lhe enviassem os ficheiros em Word. Quando os recebe, desabafa numa outra mensagem: “Isto está mal… Quem lhe fez isto com o curriculum de vida que você tem merecia ir preso ou despedido…o pior é o meu fim-de-semana”.

Como só concorrem dois candidatos, o concurso é encerrado e em Dezembro é lançado um outro nos mesmos moldes, ao qual concorrem quatro pessoas, incluindo Figueiredo. Desta vez, Anes atribui 19 valores à avaliação curricular do amigo e mais tarde envia-lhe um documento confidencial sobre o perfil de competências comportamentais dos candidatos, que só circulara dentro do júri. Após o amigo fazer a prova de aptidão on-line, a vogal informa Figueiredo que o teste revelara um estado de frustração na função que poderia afectar o seu desempenho. Tal permitiu, diz o MP, ao presidente do IRN preparar-se para a entrevista, onde é Maria Antónia Anes a confrontá-lo com essa debilidade.

No final do concurso como não há três candidatos aptos, o procedimento é novamente encerrado com a indicação à ministra da Justiça que poderia escolher entre os candidatos que reunissem o perfil anteriormente definido. Paula Teixeira da Cruz reconduz António Figueiredo em Fevereiro de 2014, deixando este o cargo na sequência da sua detenção em Novembro desse ano, no âmbito deste processo. Esteve quase um ano em prisão preventiva, actualmente está preso em casa.

Contactada pelo PÚBLICO, a advogada de Anes, Maria João Costa, optou por não fazer comentários à acusação, argumentando que “o lugar próprio para discutir esta questão é o processo”. Também o defensor de Figueiredo, Rui Patrício, disse que reagirá “no momento próprio e pela forma adequada”.

Cresap tem 42 concursos à espera do novo Governo
A Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (Cresap) foi criada em Setembro de 2012, na sequência das alterações ao Estatuto do Pessoal Dirigente aprovadas um ano antes pelo Governo de Passos Coelho e Paulo Portas. A ideia era criar um sistema transparente e imune a pressões políticas para recrutar os dirigentes de topo do Estado.

Dirigida por João Bilhim, é por esta comissão que passa todo o processo de selecção dos dirigentes de primeiro e segundo grau: directores e subdirectores gerais, presidentes de institutos públicos, respectivos vice-presidentes e vogais.

Todo o processo de selecção é conduzido pela Cresap, que indica um júri para cada concurso, mas a decisão final fica nas mãos do poder político. No final de cada concurso, a comissão envia uma lista com o nome dos três finalistas (ordenados por ordem alfabética) ao membro do Governo, a quem cabe escolher.

Este processo foi muito criticado, sobretudo quando foi divulgado que na área da Segurança Social todos os dirigentes escolhidos pelo Governo, com base na short-list da Cresap tinham ligações aos partidos que estavam no poder (PSD e CDS-PP). Por outro lado, a ausência de um prazo legal para os ministros efectuarem as nomeações fazia com que muitos processos se arrastassem por longos meses.

O Governo decidiu alterar a lei e desde 1 de Outubro estão em vigor novos procedimentos. Desde logo, foi retomada a regra que impede as nomeações de dirigentes de organismos públicos entre a data de convocação de eleições e a tomada de posse do novo executivo. Por essa razão, a Cresap tem neste momento pendentes 42 concursos, uns já terminados e outros a decorrer, que estão à espera de um novo executivo.

Outra alteração tem a ver com a definição do perfil dos candidatos aos concursos. Deixou de ser o membro do Governo a definir esse perfil, passando a Cresap a elaborar “uma proposta de perfil”, que depois é homologada pelo executivo. Foram também clarificados os procedimentos quando o concurso fica deserto e quando os candidatos que fazem parte da lista final desistem. No primeiro caso, o Governo pode escolher quem quiser mas o nome, tal como acontece com os gestores públicos, fica sujeito a uma avaliação prévia que não é vinculativa. No segundo, o membro do Governo pode pedir à comissão que indique outros candidatos, antes de lançar novo concurso. com Raquel Martins

Sugerir correcção
Ler 2 comentários