O Vale era Verde?

Contratos precários, sobrecargas de horário, métricas e tarefas administrativas que tornam irónica a expressão “estudasses…”.

Avancemos em prolepse sobre essa evocação de um Portugal dos 80, para a capital da Letónia, Riga em 2008. As mesmas caras, com agricultores, empresários, cientistas… mas, a inocência ficou para trás e algum sentido crítico ajuda a despertar o esclarecimento. Cartazes similares num país distante, uma realidade próxima ao último sucesso de Hollywood (curiosamente, num dos cartazes, um empresário abre a camisa para tornar-se o super-homem). Afinal, “de que nos lembramos, quando nos lembramos de nós?” recuperando aqui a pergunta do fotógrafo Duarte Amaral Netto.

Avancemos por isso em jumcut, agora para olhar para outra face: doutorados, geração mais qualificada e pessoas que deram anos e anos da sua vida ao ensino superior e ciência. Acreditaram e trabalharam dando o seu melhor, em nome do mesmo país. Mas as caras são outras e nelas lê-se um misto de revolta e indignação, a obrigação de contenção perante um sistema gerido sem racionalidade. Há medo, sedimentado num velho jogo: estes são os rostos de um país amputado.

Em 2015, em pleno Verão, houve um debate nas páginas deste jornal sobre o politécnico e a universidade. Curioso sintoma e interessante o debate, mas sejamos claros: hoje, a universidade é o politécnico. É um interessante caso da negação da negação. O politécnico, que começou por ser a não-universidade, reuniu uma série de atributos que o obrigaram a constituir-se nesse reverso. Não deixa de ser irónico, que na opinião pública, o politécnico se tenha constituído como o lugar dos que não têm lugar na universidade. Esse lugar de exclusão, de suposta praticabilidade, aplicação, saber técnico, surge agora como resposta ao impasse da universidade. Estabelecido o marco desse bloqueio, a universidade torna-se politécnico. Para quem ainda não acredita, basta observar a dominância do discurso da ligação ao meio, a produção de resultados, a aplicabilidade da investigação, da necessidade de produzir resultados (imediatos).

Quando os cursos de curta duração do politécnico ainda estiverem para conseguir apanhar a realidade, tentando com que escolas industriais do século XIX possam fazer sentido no século XXI, o que fizemos pelo país, pela destruição do que investimos na qualificação, estará tão irremediavelmente perdido, que então alguns irão tentar recuperá-lo, como um cão que procura sempre a sua cauda.

O caminho que estamos a trilhar esvazia a herança de Prometeu. Está a ser vencido pela imprudência.

Não há rankings internacionais sem docentes e investigadores. Os colegas que estão nas instituições é que trabalham diariamente para conseguir resultados. Habitam e trabalham no surreal Kafkaesco. São eles que tentaram ultrapassar o corte de 30% sobre o financiamento. São eles que tentaram forçar a entrada na biblioteca, mesmo quando estava fechada nesse querido mês de agosto, porque houve cortes e mesmo a luz e a água são difíceis de pagar. São eles que persistem em contratos precários (isto quando não sobrevivem da famigerada bolsa). São eles que resistem à decisão da Fundação para a Ciência e a Tecnologia arrasar 40% porque… porque é assim pequeno e o pequeno tem muita força, mas a arrogância é primus inter pares. A eles se deve muito do financiamento, obrigados que foram a transformar-se em caixeiros-viajantes da ciência. Por vezes, quando se vê as pessoas a correr, lembramo-nos do Forrest Gump.

Contratos precários, sobrecargas de horário, métricas e tarefas administrativas que tornam irónica a expressão “estudasses…”. Em breve, serão menos. O país já percebeu isso.

Voltamos ao início deste texto, mas agora com a lição de John Ford: o Vale é sempre mais verde aos olhos de uma criança. Infelizmente, o fim do filme mantém-se igual ao seu início, pega-se na resignação, juntam-se os pertences e parte-se com mágoa. Tudo como antigamente? Apenas pegamos na mochila e esquecemos?

Vice-presidente da direção do SNESup

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