Uma história portuguesa

Precisava Sócrates daquele ornamento? Tinha acordado tarde demais para as delícias da especulação filosófica?

Os crimes de que acusam Sócrates não me impressionam: de certa maneira são comuns. Na história toda desta extravagante personagem só gostava de perceber por que razão ele precisava de uma licenciatura e, depois, de um grau qualquer (mestrado?) com o carimbo da Sorbonne.

Há outros casos desta ansiedade académica. Eanes, por exemplo. Comandou um golpe militar, foi chefe do estado-maior general das FA, num tempo em que os militares ainda decidiam a política portuguesa. A seguir passou para Belém, onde se aguentou sem esforço dois mandatos. Mas no fim resolveu ir fazer um doutoramento para Espanha, que nunca publicou e raras pessoas lhe reconhecem. Que espécie de loucura o atacou numa idade madura, com uma carreira, para a geração dele incomparável, e – suponho – algum juízo adquirido em quase cinquenta anos?

E que espécie de loucura impeliu o sr. (?) Relvas, um homem poderoso no partido e no governo, a cozinhar uma licenciatura, que o MEC parece que desautorizou? A lei não impõe a nenhum deputado, ministro ou primeiro-ministro o dever de mostrar qualquer aproveitamento no que por aí se chama “sistema educativo”; basta a prova da maioridade e da nacionalidade. O que ganhou o sr. Relvas a exibir um “curso”, pelo menos duvidoso? Mais peso político? Mais respeito? Mais distinção num país que exporta milhares de licenciados, e “mestrados”, e doutorados? O insigne privilégio de ser tratado por “sr. dr.” pelos porteiros do PSD e os contínuos da Assembleia da República? O que ele perdeu em prestígio político e numa série interminável de vexames sabemos nós.

O eng.º Sócrates também seguiu o caminho dos preclaros varões que o antecederam. Não tenciono seguir as peripécias que o levaram da Covilhã a Paris, e nem sequer falar do livro que ele alegadamente por lá escreveu e que, como um profissional consciencioso, na altura própria comprei e li. Mas, como sucedera antes com Eanes e com Relvas, fiquei de boca aberta com aquela aventura. Precisava Sócrates daquele ornamento? Tinha acordado tarde demais para as delícias da especulação filosófica? Ou, mais simplesmente, a veneração por quem conseguia escrever o nome sem erros de ortografia, típica de um país de iletrados, nunca lhe saíra do corpo e ele tremia de vergonha e de insegurança a cada vez que via (principalmente no Conselho de Ministros) um “dr.” autêntico com o seu cesto de canudos? Não juro, mas suspeito que esse foi o verdadeiro motivo que o empurrou para a triste história do livro: uma história profundamente portuguesa.

Sugerir correcção
Ler 13 comentários