Financial Times: o iene ganhou a guerra pela informação financeira

O histórico jornal foi vendido aos japoneses da Nikkei, numa corrida em que entravam também norte-americanos e alemães. Operação faz parte da estratégia de internacionalização da companhia.

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A Nikkei fez questão de enfatizar que “a independência editorial vai ser mantida Yuya Shino/Reuters

“Só por cima do meu cadáver.” A frase é atribuída a Marjorie Scardino, directora executiva da Pearson entre 1997 e 2013, que fazia assim questão de vincar a sua posição em relação à hipótese de a empresa se desfazer do Financial Times (FT).

Não foi preciso tanto. Scardino mudou-se para o conselho de administração do Twitter no ano em que a publicação fez 125 anos e, passados dois anos, o jornal foi vendido.

John Fallon, o director que lhe sucedeu, desde logo mostrou não ter uma ligação tão forte ao histórico jornal económico que, desde 1958, era detido pela companhia. Em 2013, em resposta a uma mais uma vaga de rumores sobre a venda do FT, Fallon afirmou que o jornal cor de salmão “não está à venda” e referiu-se à publicação como uma “parte valiosa da Pearson”.

Quinta-feira, depois de concluídas as negociações para a venda do jornal britânico aos japoneses do grupo Nikkei por 1195 milhões de euros, o director da Pearson afirmou que era sua responsabilidade, desde o primeiro dia em que assumiu funções, questionar-se regularmente se a empresa ainda era o melhor proprietário para o FT.

A aquisição por parte de um grupo praticamente desconhecido no Ocidente levantou imediatamente preocupações na redacção da publicação. A Reuters e o Guardian ouviram vários jornalistas do jornal que serve de referência aos profissionais do mundo dos negócios e usam expressões que vão desde o “choque” à “apreensão” para descrever o ambiente que se abateu. Pouco se sabia sobre o grupo Nikkei, para além de que partilha o nome com o principal índice da bolsa de Tóquio. 

Ao mesmo tempo, à recepção da notícia seguiu-se um ligeiro sentimento de alívio por a compradora não ser a Bloomberg – também apontada como potencial interessada – o que poderia resultar em duplicação de funções e, consequentemente, em despedimentos.

Ao longo do período de especulação na imprensa internacional que precedeu a venda do FT, várias foram as companhias incluídas na corrida ao “troféu”, como foi apelidado o Grupo FT. Das norte-americanas Bloomberg e Thomson Reuters ao grupo alemão Axel Springer. A agência Reuters dá conta de um jornalista do Times que até gracejava com a situação: “Estávamos todos a pesquisar freneticamente Axel Springer, para perceber quem eles eram… e toda a gente estava a exibir os seus grandes conhecimentos em alemão”.

Logo pela manhã de quinta-feira, a imprensa económica avançava a conclusão iminente do negócio, o que levou a Pearson a admitir que estava “em conversações avançadas” para finalizar a operação. O comprador mais provável parecia ser a Axel Springer, que detém títulos que vão do tablóide Bild ao jornal de referência Die Welt. Num artigo publicado na sexta-feira, o próprio FT veio a confirmar que esta era uma forte possibilidade e que o grupo alemão se manteve na corrida até 15 minutos antes do desfecho do negócio, sendo a sua proposta apenas batida pela empresa nipónica.

Ao comunicado da Axel Springer, emitido ao início da tarde a dizer que não iria avançar com a compra, seguiu-se o da Pearson, a informar que a propriedade do jornal especializado em economia ia parar a Tóquio.

Ao Financial Times, o presidente executivo da Nikkei, Naotoshi Okada, revelou que as negociações para a aquisição do título londrino tiveram início há cinco semanas, a meio de Junho. Okada conta que o acordo para o preço da aquisição foi obtido por telefone e que viajou para a capital britânica, já nesta semana, para fechar o negócio.

Na tentativa de obter um termo de comparação com os 1195 milhões de euros, pode olhar-se para o exemplo do Washington Post, ressalvando as devidas diferenças. O diário americano tinha prejuízos de perto de 228 milhões de euros quando em 2013 foi comprado por Jeff Bezos, fundador da Amazon, o FT não.

Mais perto do valor recebido pela Pearson está a avaliação citada pelo New York Times (NYT) para o jornal digital Huffington Post, 1000 milhões de dólares, qualquer coisa como 911 milhões de euros. Mas este é um cálculo feito pelos executivos do próprio grupo e não um negócio concretizado.

Os analistas subscrevem a tese de que este foi “um bom negócio”. Do Wall Street Journal à Reuters, os especialistas dizem que é “difícil questionar o valor”, que “é mais do que muitas pessoas estavam à espera”. O analista de media Ken Doctor, entende que o montante desembolsado pelos japoneses remete para o “auge da venda de jornais, antes da grande recessão e da devastação causada” pelo advento do digital.

Mesmo com este montante envolvido, a venda do título não inclui 50% da revista The Economist, que ainda está nas mãos do grupo britânico, nem o património imobiliário do jornal, que inclui a sede em South Bridge, Londres. O próprio John Fallon afirmou, na conferência de imprensa em que foi anunciada a transacção, que o valor representa “um retorno muito bom para os accionistas da Pearson”.

E, se representa um bom encaixe para os accionistas, representa também uma boa oportunidade para o grupo dirigido por Fallon, que tem na publicação de livros escolares a maior fatia dos seus lucros, ao valer quase três quartos. A estratégia do grupo passa agora pela concentração no ramo prioritário de negócio. Parte do encaixe gerado com esta operação, anunciou a companhia, será canalizado para o reforço do investimento na sua área de educação.

"O grupo Pearson foi, durante quase 60 anos, um orgulhoso proprietário do FT”, mas o novo ecossistema mediático (advento da internet e crescimento das plataformas móveis) faz com que “a melhor forma de assegurar o sucesso jornalístico e comercial” do FT passe por integrá-lo “numa empresa global e digital de media", disse o director executivo em comunicado.

A Pearson descreve-se como a maior companhia da área da educação e, para além do Grupo FT e da participação na The Economist, detém ainda uma quota de 47% na editora Penguin Random House, cujo futuro não foi ainda divulgado. O grupo que detém o jornal económico desde 1958 já esteve em sectores tão distintos como a banca, parques temáticos ou os museus de figuras de cera Madame Tussaud’s. Já estiveram presentes na Península Ibérica, através de uma participação no grupo espanhol Recoletos, ex-dono do 50% do Diário Económico.

Um desconhecido histórico
“Se fosse um jornalista do FT, ficaria preocupado, mas ficaria preocupado com quem quer que fosse o comprador”, observa Claudio Aspesi, citado pelo New York Times. O analista londrino avalia a situação pelo lado positivo: “É melhor [a Nikkei] que um qualquer oligarca”.

Num editorial, o Guardian mostra-se menos receoso que os jornalistas do FT. Para o generalista, o acordo tem tantas hipóteses de correr mal como bem, sendo que acredita que as melhores componentes de cada companhia “irão influenciar-se mutuamente”. “A Nikkei tem o capital e o FT o alcance global, a linguagem e o conhecimento” e podem combinar estas características para alcançar bons resultados na era digital, pode ler-se no texto publicado nesta sexta-feira.

Apesar de ser relativamente desconhecido no continente europeu, o grupo japonês tem origem no ano de 1876, 12 anos antes da fundação do título que agora comprou.

O Nihon Keizai Shimbun, abreviado para Nikkei, é o jornal de economia mais lido do Japão, com uma circulação de mais de três milhões de exemplares, enquanto o Financial Times tem uma circulação de 730 mil jornais. Fora do seu país de origem, o nome é mais associado ao principal índice da bolsa de Tóquio, o Nikkei 225, lista cuja publicação foi iniciada pelo Nihon Keizai Shimbun. 

No século XX o jornal Nikkei tornou-se no Grupo Nikkei, com negócios que vão desde canais de televisão a organização de eventos, mas sempre com a prioridade no ramo noticioso. Em 2014, o grupo facturou 73,5 mil milhões de euros, o que significa um decréscimo de 10% em relação ao ano anterior. Tendo em conta estes números, porque é que o Nikkei precisaria do Financial Times, o seu homólogo inglês, que no ano passado gerou “apenas” 473 milhões de euros em vendas?

O CEO do maior grupo de media nipónico, Tsuneo Kita, disse nesta sexta-feira, numa conferência de imprensa dada em Tóquio, que a “filosofia e os valores do FT são exactamente iguais aos nossos”. Mas as explicações veiculadas pela imprensa internacional no dia a seguir ao anúncio da compra relacionam a demografia japonesa com a necessidade de o grupo ganhar novos públicos fora do país. Mas também pelo objectivo de aumentar a influência política.

A revista Nikkei Asian Review foi lançada em língua inglesa em 2013, parte de uma estratégia de expansão internacional, que tem aumentado silenciosamente nos últimos anos, indica a Quartz, publicação online. A necessidade é justificada pelo Wall Street Journal, concorrente do FT no mercado internacional, pelo fraco crescimento económico e pela quebra demográfica, que reduz a base de assinaturas.

Em relação à questão política, a Quartz lembra uma afirmação proferida pelo primeiro ministro japonês Shinzo Abe em 2013 no parlamento. As “ideias do nosso país” estão a ser incompreendidas pelos estrangeiros, disse. Abe apelou então à “recolha activa e difusão de informações” para que o Japão fosse “correctamente compreendido”.

Na sexta-feira, Tsuneo Kita fez questão de enfatizar que “a independência editorial vai ser mantida”. O “FT vai continuar a ser o FT”, reforçou, na conferência em que afirmou que iria manter o actual director, Lionel Barber.

Apesar dos esforços para garantir a manutenção da cultura da publicação londrina, as preocupações sobre as notícias que chegam do Oriente reproduzem-se. O Guardian lembra os recentes casos de manipulação de contabilidade de grandes corporações japonesas (Olympus e Toshiba) para aventar o “potencial conflito entre a atitude britânica e japonesa em relação a escândalos financeiros”. O Financial Times foi dos primeiros a dar a notícia, a Nikkei só a deu quando se tornou inevitável.

No entanto, o Guardian explica que o jornalismo japonês “não é corrupto, mas sim respeitoso, assim como a cultura que o rodeia”, o que pode entrar em rota de colisão com as características próprias do jornalismo anglo-saxónico. Do outro lado do oceano, o NYT e a Reuters dão conta da proximidade da Nikkei ao mundo empresarial nipónico e ao governo conservador de Abe, ambas consequência da posição dominante na imprensa económica do país.

Uma situação tão mais preocupante, uma vez que são vários os relatos das pressões do primeiro-ministro sobre os órgãos de comunicação social do país. Em Maio, a Economist reportava que se “têm tornado habituais” “intervenções discretas” de políticos nos media japoneses, com as pressões governamentais a resultar no afastamento e substituição de jornalistas. Em 2010, o Japão ocupava a 11ª posição no Índice da Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras. Em cinco anos caiu 50 posições, para 61º lugar. O Reino Unido ocupa a posição 34.

Tsuneo Kita, citado pelo FT, disse que a independência editorial acrescenta valor à marca, algo que, se a Nikkei quiser retirar dividendos, “não deve ser comprometido”. Tanto quanto é conhecido, garantias formais sobre esta matéria não foram inscritas no contrato da aquisição que deve ficar concluída até ao final do ano. 

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