Transexualidade e Islão: "durante o dia assediam, durante a noite são clientes"

Giorgio Taraschi fotografou o interior de um abrigo para jovens prostitutas transexuais na Indonésia, o país que alberga 12,7% da população islâmica mundial. O projecto “Hotel Waria” faz “pela primeira vez, o retrato desta comunidade de uma forma não sexualizada”

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Giorgio Taraschi

O fotógrafo italiano Giorgio Taraschi reside em Bangkok, na Tailândia, há quatro anos e é o autor do projecto “Hotel Waria” que retrata um abrigo para jovens prostitutas transexuais na Indonésia, que tem a característica singular de ser casa para 12,7% da população islâmica de todo o mundo.

“Quando se aborda este tipo de temas, especialmente no sudeste asiático, acaba-se sempre a fotografar estereótipos, de certo modo”, disse ao P3. “As pessoas associam esta região à mudança de sexo e a temas relacionados com a sexualidade e por isso foi um desafio.” Giorgio necessitava de encontrar um novo ângulo, de fotografar esta realidade num contexto específico. “E se o fizesse na Indonésia, que é o país que alberga a maior percentagem de população islâmica a nível mundial?”

Inicialmente o objectivo era documentar o quotidiano num albergue para prostitutas transexuais em idade de reforma, em Jacarta, e Giorgio, em colaboração com um jornalista italiano, chegou a fotografar esse local e os seus residentes. O resultado ficou aquém das expectativas e por isso sentiu necessidade de o completar com um contraponto: um albergue para jovens prostitutas transexuais. Assim chegou até Hotel Waria, um local que descreve como “absolutamente incrível”, com uma história que “seria impossível não contar”.

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Hotel Waria no centro de Jacarta, Indonésia

Mulher + homem = waria

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Béa (à direita), uma das residentes de Hotel Waria

Eram 23h30 de um dia de semana quando Giorgio Taraschi, acompanhado de um colega jornalista e videógrafo italiano, entrou pela primeira vez em Hotel “Waria” (o termo “Waria” provém da combinação das palavras mulher "want" e homem "pria" em indonésio). “No início foi muito estranho porque trabalhámos no local sem saber, de todo, o que iríamos encontrar. Imaginem dois estranhos a entrar em vossa casa às 23h30, sem aviso prévio, e munidos de tripés e câmaras… Pode ser bastante intimidante. Tanto que mantive a minha câmara guardada nas duas horas seguintes. Passado esse tempo, já nos dávamos melhor e elas começaram a falar mais, despreocupadamente. Uma delas foi muito simpática e apresentou-me a todas as outras. Foi uma boa altura para estar lá, aquela hora da noite, porque estavam a preparar-se para sair e trabalhar nas ruas. Pude acompanhar todo o processo de maquilhagem e preparação”. As imagens do projecto "Hotel Waria" são resultado de três noites de permanência no local.

Os sentimentos de família e comunhão que são partilhados pelas residentes são as principais características do albergue que foi criado em parceria com a igreja católica. Mami Joyce, fundadora e directora do albergue, convenientemente islâmica e católica, é mais do que uma mãe para estas jovens. “Ela revela um interesse genuíno por elas porque teve exactamente a mesma vida e sabe exactamente aquilo por que elas passam, dia após dia. É uma pessoa inspiradora.” Mami Joyce é uma personalidade respeitada em Jacarta.

A pessoa mais interessante que Giorgio Taraschi fotografou foi Béa. “Era a mais nova. Ela mostrou imenso interesse em falar, apesar de os pais desconhecerem totalmente a sua profissão. Enviaram-na para Jacarta para que procurasse um emprego e ela envia dinheiro para casa todos os meses. Não fez qualquer cirurgia nem usa injecções de botox, nada, mas tem aspecto de mulher. Ninguém consegue perceber, à partida, que se trata de um rapaz. Quando sabes isso começas a notar alguns detalhes, mas se a encontrares na rua dirias que é uma mulher. Ela tinha chegado há poucas semanas e as outras sentiam bastante inveja porque sendo a mais jovem facilmente ganhava duas ou três vezes mais. Era a mais requerida. Sentia-se muito sozinha. Não que as outras gozassem com ela ou algo parecido, mas não eram muito amigáveis.”

Atiram “garrafas cheias de urina”

Embora actos de violência física contra esta comunidade não sejam comuns, o mesmo não se pode afirmar no que toca a episódios de assédio.  “O mais engraçado é que, ao falar com as residentes do alergue da Mami Joyce, muitas diziam ‘os membros da Frente da Defesa Islâmica têm de manter as aparências e por isso é que nos assediam. Não o fazem tanto como no passado, às vezes limitam-se a passar de carro e a atirar-nos garrafas cheias de urina ou algo parecido. Isto acontece durante o dia. À noite, a maioria deles são nossos clientes’”. O fotógrafo prossegue: “Achei este lado da história muito interessante. Os defensores da frente islâmica são muito mais activos noutras regiões da Indonésia, mas em Jacarta a estrutura está em colapso. Na verdade, esta história trouxe-me um pouco de esperança. Durante o dia assediam, durante a noite são clientes. Alguns chegam a ter algum tipo de relação verdadeira com algumas.”

As organizações não-governamentais locais apontam para existência de milhões de transexuais na Indonésia. “A percentagem para que apontam é extremamente elevada", informa o fotógrafo. "Na verdade, também irrealista: segundo as suas estimativas, duas em cada dez pessoas seriam transexuais na Indonésia e isso é exagerado.” Em 2010, o governo indonésio considerava a transexualidade uma doença mental, no entanto mudanças têm vindo a notar-se. “O governo apercebeu-se que existe uma enorme quantidade de transexuais e como se trata de uma fatia de pessoas que votam durante os períodos eleitorais, começou a tratá-las de modo mais simpático. Espero que no futuro não os vejam apenas como eleitores e que os reconheçam como um terceiro género.”

Giorgio Taraschi colabora com o International New York Times, The Guardian, GEO Voyage, Courrier International, entre outros e ganhou o primeiro prémio na categoria documental do Pride Photo Award de 2014 e medalha de prata e menção honrosa no prémio Px3 Prix de la Photographie Paris 2014 com o projecto "Hotel Waria". Encontra-se actualmente a preparar novo projecto fotográfico que terá como tema central o impacto da construção de barragens ao longo do rio Mekong na actividade piscatória no norte do Vietname.

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