Clandestino

O tour de force de Táxi é a fidelidade a um mundo paralelo e subterrâneo, com figuras condenadas à ilegalidade. Como Jafar Panahi, que foi empurrado para dentro do seu próprio cinema.

Foto
Jafar Panahi como personagem do seu cinema: clandestino, ilegal, circulando no underground

Num movimento inverso de A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, em que uma personagem saía do ecrã para o chamado mundo real nos tempos de Depressão, o cineasta iraniano Jafar Panahi foi empurrado para dentro do seu cinema em Isto Não É Um Filme (2011).

Foi o primeiro que realizou após a proibição, pelas autoridades iranianias, de trabalhar como cineasta durante os 20 anos que se seguiriam.
Táxi, após Closed Curtain (2013), é o terceiro filme de uma existência que foi condenada à clandestinidade. Há ironia, tragédia e escândalo nisto, nesta possibilidade de lermos tão facilmente, ou correndo o risco de leviandade, a coincidência entre as vidas que Panahi ficcionou nos filmes anteriores (as mulheres de O Círculo, em 2000, o vendedor de pizzas de Sangue e Ouro, em 2003, a rapariga impedida de assistir a um desafio de futebol de OffSide, em 2006...) e a vida actual do realizador: acedeu à condição de personagem do seu cinema. Como se tivesse passado toda uma obra a mostrar pessoas enclausuradas, a explicitar a vida cercada no Irão (a Teerão de O Círculo, que se estreou no Festival de Veneza em 2000, foi uma primeira vez para um público ocidental e permaneceu invisível para os espectadores iranianos), e dessa forma involuntariamente desenhando a sua clausura.

Há aquele momento, em Isto Não É Um Filme, em que Panahi desenha no chão os muros que cercam a personagem de um argumento que nunca chegou a filmar e que contaria a história de uma rapariga que os pais não deixaram que se matriculasse na faculdade e encerraram em casa. Isso levou o co-realizador desse filme de 2011, Mojtaba Mirtahmasb, a ironizar sobre um novo género cinematográfico, constituído com os making of dos filmes que os cineastas iranianos nunca conseguiram fazer. Há uma actualização, um upgrade, em Táxi: parece divertir Panahi – é preciso matizar esse divertimento com a frustração, com o desespero mesmo – a forma como, através das pessoas que entram no táxi e o reconhecem como o realizador do filme X, o cinema aparece com tonalidades premonitórias, como se os filmes que Panahi realizou tivessem já anunciado o que lhe iria acontecer, e simultaneamente como prova insanável da realidade, pois nenhum código de censura para formatar um filme “distribuível” a pode rasurar – é isso que aprende, sob o olhar do tio Jafar, a sobrinha do realizador, sempre com a pequena câmara em punho.

O tour de force aqui não é formal. Táxi não é habitado nem pela vertigem de O Círculo (Leão de Ouro em Veneza, talvez a obra-prima do realizador) nem pela implacável abstracção de Isto Não É Um Filme – ambos concretizando a aliança de beleza e crueldade de que a cinematografia iraniana continua a ser cultora, vampirizando e simultaneamente deixando-se consumir por personagens.
No lugar disso, há, de um lado, a vontade de, tendo Panahi acesso ao exterior, circulando pelas ruas de Teerão com o seu táxi (permanecem misteriosas as circunstâncias em que o pode fazer; que “pacto” existe, se é que existe, entre as autoridades e um condenado?), querer meter o mundo dentro do seu carro. O que acusa um certo pendor de representatividade temática no filme – matizando o mistério, perturbação central do cinema iraniano, sobre a condição das figuras que entram naquele táxi: são pessoas ou personagens, é documentário ou ficção, falam espontaneamente ou dizem diálogos?

Foto

Depois, há uma espécie de bonomia, um certo paternalismo mesmo, neste cineasta clandestino, como se parte do filme correspondesse à necessidade – compreensível, dada a situação a que foi condenado – de se caucionar como cineasta, de mostrar o seu património, de dar a ver a sua existência e obra como provas.
O tour de force de Táxi é então, apesar dos condicionalismos em que foi feito – talvez por causa deles –, a fidelidade a um mundo paralelo ou subterrâneo, com personagens condenadas à invisibilidade, com corrupios sem saída, tal como as movimentações circulares de O Círculo que se estancavam quando o rectângulo das janelas do cárcere se fechavam sobre as personagens – o táxi também é vandalizado, estancado no final. Como se o filme fosse cumprindo – é o andamento final, e esse movimento deixa marcas que se sobrepõem às lições de Panahi à sobrinha – a sua condição clandestina. Roubos e outros delitos – dentro e fora do carro –, um filme como peça de uma cadeia de tráficos diluindo-se nela. Não chegou Isto Não É Um Filme a Cannes numa pen dentro de um bolo?
Quando tudo começa em Táxi, a câmara que Panahi utiliza para filmar o interior do carro é confundida com um instrumento anti-roubo. Não, é um instrumento de roubo: é uma câmara de cinema.

Sugerir correcção
Comentar