Camilo entre anátemas de bacalhau e boémias de espírito

Camilo Castelo Branco morreu há 125 anos. Apesar de não ser um escritor com imagem de gastrónomo e “bom garfo”, a Associação Portuguesa de Escritores quis mostrar que o autor de Amor de Perdição sabia de comida – e fê-lo num jantar com alguns dos seus pratos favoritos.

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Pato à Maria Moises, uma versão modernizada do pato com molho de laranja de que Camilo gostava Nuno Ferreira Santos
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O pato foi o prato principal da refeição em homenagem a Camilo Nuno Ferreira Santos
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Anátemas de Bacalhau, mais conhecidos como pastéis ou bolinhos Nuno Ferreira Santos
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Os Ovos à Sereia levam salpicão e pão frito Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

O rosto triste e magro, de enorme bigode a cobrir a boca, que nos olha dos postais de fundo verde espalhados sobre as mesas do restaurante Martinho da Arcada, em Lisboa, não parece corresponder àquilo a que habitualmente chamamos “um bom garfo”. E, de facto, afirma Luís Machado, da Associação Portuguesa de Escritores, que organizou este jantar na segunda-feira, a partir dos 40 anos Camilo Castelo Branco tornou-se, por razões de saúde, bastante frugal.

Isto não significa, no entanto, que o escritor cujos 125 anos da morte aqui se recordavam não tenha feito nos mais de 100 livros que escreveu (oficialmente foram 133, mas há muitas dezenas mais sob pseudónimo ou não assinados) inspiradoras descrições do que se comia em Portugal no século XIX. E, sobretudo, não significa que não fosse um conhecedor e até um apreciador de vários pratos. Foi precisamente isso que Luís Machado quis mostrar ao organizar este jantar-tertúlia, que se seguiu a uma mesa redonda, no dia 22, em que a figura e a obra de Camilo foram discutidas por Ernesto Rodrigues, João Bigotte Chorão, José Manuel Mendes e Margarida Braga Neves.

Desta vez, os oradores foram o próprio Luís Machado, o crítico de cinema João Lopes e a sexóloga Marta Crawford. Mas antes da gastronomia, vamos ao cinema. Foi dada ordem para que começassem a ser servidos os Anátemas de Bacalhau (na realidade, pastéis de bacalhau, ou bolinhos como são chamados no Norte) e João Lopes começou a falar sobre algo que “não existe: uma filmografia camiliana no cinema português”. Mas, apesar de “não podermos esperar que haja um Camilo no cinema português como existe um Shakespeare no cinema britânico”, existem “três adaptações importantes” da obra mais conhecida do escritor, Amor de Perdição.

Foi o pretexto para João Lopes recordar o impacto “profundamente dramático” da adaptação feita por Manoel de Oliveira, em 1979. A forma como o filme foi recebido quando passou pela primeira vez, em episódios, na televisão, constitui, na opinião do crítico, “um dos momentos mais tristes da nossa vida cultural pós-25 de Abril” – o trabalho de Manoel de Oliveira “foi literalmente trucidado na praça pública pela esmagadora maioria das pessoas do meio cinematográfico e literário”. Quase um ano depois, o filme foi apresentado pela primeira vez em sala, no Festival de Cinema da Figueira e foi recebido “de forma apoteótica”. Pelo meio “o filme tinha sido capa dos Cahiers du Cinema, em França”.

João Lopes percorreu também as outras adaptações (uma de 1921, de George Pallu, ainda na época do cinema mudo, outra de 43 de António Lopes Ribeiro, e uma mais recente, Um Amor de Perdição, que o crítico coloca noutro grupo por deslocar a história no tempo aproximando-a no presente, que é a de 2008, de Mário Barroso). E concluiu com uma afirmação do próprio Manoel de Oliveira numa entrevista: “O Amor de Perdição não é esquemático, não é frio, não é numérico, não é geométrico. Toca na substância de uma época. É o homem que joga com reacções e maneiras de sentir que de certa maneira são permanentes. Portanto, é possível compreender uma história passada há 200 como se compreende uma história passada hoje.”

Mais tarde, já depois da sobremesa, surgiu um “estendal” de “lavagem de roupa suja” da vida de Camilo que Marta Crawford literalmente pendurou em cordas esticadas por cima da cabeça dos participantes no jantar, com fotografias das várias mulheres e episódios românticos e trágicos da vida do escritor. E, por fim, o oftalmologista Vítor Águas explicou que a cegueira de Camilo, que o levou ao suicídio em 1890, com 65 anos, teria origem numa sífilis que atingiu o sistema nervoso central e que culminou numa atrofia óptica. Se essa sífilis tivesse sido tratada a tempo, a cegueira poderia ter sido evitada, defendeu.  

Entretanto, enquanto se discutia a vida e o homem, provaram-se iguarias que, segundo Luís Machado, seriam do seu agrado. Houve, para além dos Anátemas de Bacalhau, Caldo à Eusébio Macário (caldo verde), ovos à sereia (mexidos com salpicão e pedacinhos de pão frito), pato à Maria Moisés (peito de pato com molho de laranja), Pudim à Ana Plácido (semelhante ao Abade de Priscos) e Boémias do Espírito (rabanadas com mel). Tudo acompanhado pelos vinhos Theophilus, um verde rosé, Terrincha (branco) e Encostas do Tua (tinto).

Que Camilo sabia escrever sobre comida, não restaram dúvidas depois de alguns dos excertos lidos por Luís Machado. Como este, em Um Homem de Brios: “- Vejo que ainda me não conheces… - redarguiu Amaral, tomando de sobre a mesa um pombo assado.

– Faltava-me saber que és um grande gastrónomo.

– Aconselho-te que faças provisão de vitualhas e que venhas ali para ao pé da frasqueira, onde mana a veia límpida do champanhe. Foge de ao pé das mulheres, que devoram diante dos namoros com a sem-cerimónia de Penélope… Repara-me na Margarida Carvalhosa, que tomou à sua conta a destruição de um pato! Apre! que mobilidade de queixo!”

Ou este, em Eusébio Macário: “ – Que a mana Felícia – explicava o barão – não podia abandonar os operários, e estava muito contente, e mais gorda, comendo bem, porque tinham o melhor cozinheiro do Porto, um preto que saíra de casa do conde de Farrobo e aprendera no Mata. Expunha a sua diária na mesa com entusiasmo lambareiro e descrédito internacional das duas línguas. Ele nunca se fartava de bacalhau recheado à Richelieu, e das empadas au gratin. Explicava a Custódia o que era um vol-au-vent de borrachos, e a perna de carneiro à la Bordelaise. Que Felícia gostava muito da dobrada com molho de alcaparras, e de feijão branco à la maître de hotel. […] Sentia que não podia lembrar-se de todos os pratos, mas não pudera esquecer o coulbach de frangos, o blanquette de galinhas à l’escalate truffées, o lombo de vaca à la Macedoine, os linguados recheados au gratin, o magnífico pirão de mandioca, e a bela sopa de purée de arroz à la princesse; e que Felícia dava o cavaco pelas doçuras: entrava fortemente nas compotas, nos mirtilons, no gateau royale, nas omelettes soufflés à la vanille, e nos pãezinhos de tapioca à brasileira.”

Mas, e comer? Camilo comia? Nos tempos de juventude e boémia, parece que sim. Mas depois as gastrites crónicas e outros problemas gastro intestinais afastaram-no das grandes comezainas. Numa carta escrita em 1872 ao amigo visconde de Ouguela dá a este alguns conselhos: “Comidas fortes pouquíssimas. Nada de carnes vermelhas. Se digeres bem o peixe não passes desse alimento, e usa pouco de farinhas. […] Evita a medicina, que é a morte da caraça. A medicina resvalou-me a este irremediável estado em que me vejo. Tenho devorado todas as farmácias do Porto, e morro depois de ter enriquecido três boticários.”

Foi precisamente na vasta correspondência de Camilo que Luís Machado procurou as referências a pratos favoritos. E chegou a vários, entre os quais os que foram servidos no jantar no Martinho da Arcada. Das suas pesquisas, Luís Machado destaca duas coisas: Camilo terá sido o primeiro escritor português a utilizar a palavra “gastronomia”, e tinha nessa área referências que poucos partilhariam. Dá como exemplo uma passagem de Coração, Cabeça e Estômago: “Falei em assuntos literários com o meu antigo colega na imprensa. O homem ria-se de mim, e dizia:

- Ainda estás nisso, pobrezote? Esquece-te, brutaliza-te, faz-te estômago, se queres viver à imagem do Deus, que faz os homens neste tempo!

O único livro, que lhe vi à cabeceira da cama, era a Fisiologia do Paladar, de Brillat-Savarin, e Gastronomia, poema de Berchoux.”

Além dos dois autores franceses, acrescenta Luís Machado, Camilo cita também, em O Santo da Montanha, um dos grandes livros de receitas portugueses, a Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, cozinheiro da casa real. Por isso, o responsável da APE – que lamenta não ter podido trazer para falar nesta tertúlia o já retirado crítico gastronómico do Expresso José Quitério – acredita que o jantar servido no Martinho da Arcada, sob o olhar atento de Fernando Pessoa nas fotos da parede, teria sido do agrado de Camilo. Com gastrite ou sem ela, o autor de Amor de Perdição teria, provavelmente, lambido os longos bigodes com o caldo verde, os pastéis de bacalhau, o pato e, sobretudo, com as rabanadas polvilhadas com açúcar e canela e envolvidas por delicados fios de mel. 

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