Argentina Malhoa já lê as placas e deixou de se perder no metro

As aulas de alfabetização da associação Renovar a Mouraria, em Lisboa, já ensinam adultos a ler há dois anos mas correm o risco de ser canceladas em breve por falta de financiamento.

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Seguram os lápis e folhas com firmeza e vão escrevendo lentamente em letras redondas: “filho”, “colher”, “milho”, “mulher”. Hoje, a aula é dedicada às letras “lh”. Alguns alunos ajustam os óculos para ver melhor a frase escrita a azul no quadro branco: “O meu filho vive em Gabu”. As aulas de alfabetização da associação Renovar a Mouraria, em Lisboa, começam com a escrita da data, depois a correcção do trabalho de casa. Durante os exercícios de escrita e leitura que se seguem, fala-se dos filhos que ficaram na Guiné, em Cabo Verde ou no Mali.

Bintu, cantora de origem guineense, tem cinco filhos a viver no Senegal. Não foi à escola quando era criança, por isso não aprendeu a ler nem escrever. Mas sabe de cor as letras de inúmeras canções, e a professora, Marta Calado, garante que é uma artista muito talentosa. Os colegas confirmam.

A maioria dos alunos vem de países africanos de língua oficial portuguesa. Alguns vêm do Mali e da Nigéria. Pelas salas das aulas de alfabetização de adultos da Mouraria já passaram portugueses, mas muito poucos. A professora Marta, que dá aulas na associação desde Setembro do ano passado, afirma que “há uma grande resistência das pessoas mais velhas” em aprender a ler: “Acham sempre que já é tarde”, e, sobretudo os portugueses, “têm vergonha”.

Segundo os últimos censos, Portugal continua a ter uma das taxas mais baixas de alfabetização da Europa. Cerca de 5% da população portuguesa não sabe ler, o país aparece no terceiro lugar da lista de países europeus com maior taxa de analfabetismo, só atrás de Malta e da Turquia. A UNESCO estima que cerca de 16% da população adulta mundial não sabe ler.

As aulas de alfabetização são abertas a todos os habitantes da freguesia de Santa Maria Maior, mas quase todos os alunos são imigrantes que vivem no bairro da Mouraria, um dos mais multiculturais de Lisboa.

Aliu e Iandara vieram juntos da Guiné-Bissau e estão em Portugal há 19 anos. São duas décadas de vida em comum e às vezes nas aulas até dão os mesmos erros. Iandara é tia de Bintu, e ambas são cantoras. Os três sentam-se juntos na sala com mesas dispostas em U.

Isabel Cruz não aprendeu a ler enquanto criança porque “a madrasta não deixava ir à escola, tinha que ficar em casa a fazer o serviço”, lembra. Nasceu em Cabo Verde e já vive em Portugal há 15 anos. Chegou às aulas de alfabetização sem saber escrever o nome, mas agora já está na classe mais avançada. Antes, ir às compras ao supermercado era complicado para ela, que não sabia ler rótulos nem perceber os preços. Era o filho, que tem agora 13 anos, que a ajudava.

Argentina Malhoa, de 52 anos, nasceu em Moçambique e foi das primeiras alunas a inscrever-se nas aulas de alfabetização, que começaram há dois anos mas foram interrompidas durante alguns meses. Só agora consegue andar de metro sem dificuldade. Perdeu-se muitas vezes porque tinha vergonha de perguntar os nomes das ruas ou direcções. “Mas agora já percebo melhor”, afirma. Já não se perde, e até já guiou turistas nas visitas à Mouraria organizadas pelo projecto Migrantour, uma colaboração entre a associação Renovar a Mouraria e o Instituto Marquês de Valle Flor, que forma os imigrantes para se tornarem guias no bairro.

“É importante ensinar o que está relacionado com o que é preciso no dia-a-dia”, explica Vânia Matos, professora estagiária. Está a terminar um mestrado em Formação de Adultos e ensina a turma mais avançada. Em cada aula procura focar as necessidades dos alunos, e introduzir no processo de alfabetização a explicação de “coisas práticas como o sistema de transportes”.

Aurizanda, da Guiné-Bissau, frequenta as aulas de alfabetização durante a manhã, e trabalha na Santa Casa da Misericórdia o resto do dia. Quer tirar um curso de auxiliar na Santa Casa, onde já trabalha há sete anos, mas para isso precisa de saber ler e escrever.

Dependentes do financiamento do Fundo Europeu para a Integração dos Nacionais de Países Terceiros (FEINPT), do Alto Comissariado para as Migrações (AMC), as aulas de alfabetização podem terminar em breve, o que deixa os alunos preocupados. Aurizanda sugere em tom de brincadeira uma greve ou um protesto. O financiamento do projecto Mouraria Integra, responsável pela alfabetização, termina no fim deste mês e a ainda não se sabe se haverá fundos para continuar as aulas.

Uma nova parceria com o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) permitirá começar em Julho um novo curso de alfabetização, mas limitado a pessoas com cartão de residência em Portugal, o que exclui alguns dos antigos alunos.

“Nunca me vou cansar”, diz António Macedo, de 54 anos, demonstrando a vontade que tem em continuar a aprender. Nasceu em Cabo Verde, já vive em Lisboa há 15 anos e é um dos alunos mais antigos. “Deus queira que nunca acabem”, exclama, desanimado com a hipótese de as aulas serem canceladas por falta de financiamento.

Na aula de Marta “há uma relação muito próxima, toda a gente se ri”, conta a professora. Sente que também aprende muito com os alunos. “É interessante esta troca de culturas, de diferentes perspectivas”, acrescenta.

Na opinião de Marta, o melhor que se pode oferecer aos alunos é permitir que se sintam mais autónomos, “não terem que perguntar nada a ninguém”. Os alunos dizem que é graças às professoras que já sabem escrever e compreender algumas palavras, mas Marta assegura que “é tudo trabalho deles”. É com dedicação que se entregam à oportunidade que antes não tiveram.

Texto editado por Ana Fernandes

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