A minha inquietude

A propósito do doutoramento honoris causa de Sérgio Niza e em homenagem a quantos constroem a educação democrática no nosso país.

No dia 23 de abril estive presente, numa Aula Magna praticamente cheia, na cerimónia do doutoramento honoris causa do professor Sérgio Niza pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Não vou aqui falar do importante contributo de Sérgio Niza à Educação, ao Conhecimento, à Democracia e à Liberdade no nosso País (palavras que escrevo conscientemente com maiúsculas nestes dias de Abril, contrariando o acordo ortográfico).

Escrevo porque, a certa altura do seu discurso, Sérgio Niza disse, referindo-se à Universidade que o acolhia, querer, e cito, honrá-la com a minha inquietude. Esta pequena frase teve em mim o efeito de um interruptor ou de uma chama, uma pequenina luz bruxuleante e muda /como a exatidão como a firmeza / como a justiça, nesse dizer de Jorge de Sena que insiste no pequeno brilho da resistência.

Falo de muitas inquietudes sobre o presente e sobre o futuro, mas falo sobretudo da minha inquietude com a educação em Portugal. Uma educação que nos últimos anos sofreu dos maiores reveses da história da nossa democracia e cujo rumo agora trilhado é importante inverter, se não quisermos destruir as grandes finalidades educativas consignadas na nossa Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo. Uma educação de qualidade para todos e com todos, humanizadora e humanista, comprometida com a tarefa de acompanhar e favorecer o crescimento das crianças e dos jovens, munindo-os do poder de saber e querer saber, de serem protagonistas, com a faculdade de analisar com correção de pensamento, de criticar com rigor, de escolher com clareza de critérios e de riscos. Mulheres e homens para quem o bem comum volte a ser uma prioridade, com a saudabilidade de quem, na pertença e na solidariedade, se reconhece um com outros e não um contra outros. E no entanto, ao invés disto, tudo parece querer-nos conduzir ao permanente estalar de rivalidades; exemplo disso é o que se passa com a avaliação — e não me refiro apenas à avaliação escolar dos alunos. Estamos perigosamente a confundir avaliação com seleção, mérito com segregação, capacidade de se ultrapassar a si mesmo, com agressiva competitividade, permitindo que critérios economicistas invadam a Escola e a configurem, desfigurando-a.

A Escola é um lugar de inquietude e resistência, ou não fosse ela o lugar que os jovens habitam. Ali deveria morar uma saudável inquietude, uma comprometida resistência e não ser povoada de ansiedades doentias, de medos paralisantes, de sofrimentos estéreis convertendo-a num campo inóspito em que nos digladiamos e em relação à qual se alimentam hostilidades. Mas se a queremos saudável e desafiante, um lugar de trabalho e de aprendizagem, um locus também de felicidade, ela não pode deixar de ser o sítio de inquietude e resistência dos professores. De compromisso.

Compromisso com um ensino de qualidade para todos; compromisso com o esforço que isso exige de cada uma e de cada um de nós, professores, alunos e também famílias e quantos estão implicados na vida escolar. Compromisso com a utilização consciente da margem de liberdade e poder que cada docente pode e deve reclamar no seu desempenho na sala de aula e na sua intervenção na escola. Compromisso com a inadiável resistência aos sucessivos ataques de que professores e escolas têm vindo a ser alvo, com o reassumir do indispensável protagonismo dos docentes enquanto profissionais da educação e não como burocratas ao serviço de qualquer autoridade educativa, seja ela qual for.

Compromisso com a resistência a práticas educativas que mais não são que o adestramento intensivo e indiferenciado das crianças e dos jovens em saberes e procedimentos inadequados, muitas vezes, pouco significativos. E se, em termos curriculares, falo sobretudo com o conhecimento de causa que à Matemática diz respeito, no que toca, por exemplo, às políticas de avaliação educativas e à massificação de turmas e agrupamentos escolares, elas são genericamente desastrosas. A época de provas e exames nacionais que se aproxima será mais um dos exemplos desta insanidade que nos invadirá e ocupará.

Mas a tarefa da Escola e, nela, do professor, é bom recordá-lo, é uma tarefa de construção, de esperança, de entusiasmo. É uma tarefa tão exigente, muitas vezes tão solitária, que temos que nos unir, temos que partilhar, temos que dialogar. Não para iludir essa solidão em que devemos ser nós próprios confrontados com a vocação a ser inteiros, mas para testemunhar, experimentando, que o conjunto é mais do que a soma das partes, que não nos diluímos quando nos juntamos porque cada uma, cada um, conta e que nos juntamos para arriscar melhorar e não para nos defendermos ou nos entrincheirarmos.

Retomo a inquietude com que comecei e junto-lhe a imprescindível resistência. Inquietude e resistência a um certo discurso que agora começa a perpassar no âmbito político e social: a necessidade de estabilidade na Educação. Estabilidade, sim, mas não à custa do retrocesso e do imobilismo a que nos querem forçar. Não à custa de currículos retrógrados sustentados por estratégias que os tornaram reféns das editoras e das medidas implementadas apressadamente. Não à custa de um discurso oco e populista sobre rigor e exigência onde prevalece a ignorância do muito que se sabe e investiga hoje em didática das disciplinas e em educação. Sobretudo não à custa do desgaste e cansaço dos professores provocado por medidas que prejudicam o trabalho docente, inviabilizando tempo de qualidade para o que de verdade interessa: a atenção aos alunos, às suas dificuldades para as ajudar a ultrapassar, às suas potencialidades para permitir que se desenvolvam e se orientem; tempo para trabalhar em conjunto com os demais colegas; tempo para projetos de escola que envolvam aprendizagens significativas e participações efetivas dos alunos; tempo para a reflexão e para o diálogo, para o estudo e para a formação permanente. Tempo e condições para podermos cuidar cada um dos nossos alunos como se da rosa de O Principezinho se tratasse, nesse retorno à ingenuidade primeira de que tanto precisamos.

Professora de Matemática e presidente da direção da Associação de Professores de Matemática

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