“O livro é uma máquina de nos fazer levantar a cabeça”

Gonçalo M. Tavares encantou com as suas ideias que misturam literatura, filosofia e ciência os leitores conhecedores da sua obra na Livraria Cultura.

Foto
Gonçalo M. Tavares na sessão da Livraria Cultura DR

Gonçalo M. Tavares chega ao espaço aberto da Livraria Cultura no Shopping Iguatemi, em São Paulo, onde está a decorrer até dia 15 de Abril o encontro Minha Língua, Minha Pátria, organizada pelo jornal PÚBLICO e pela livraria. Traz o casaco na mão, a mochila às costas, o sorriso franco. É um escritor singular sobre vários aspectos. Foi aliás com esta frase que o professor de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, Samuel Titan Jr., abriu a sessão A Viagem do senhor Tavares, sábado, ao final da tarde.

“Quem entra em contacto com a literatura de Gonçalo M. Tavares sabe que dizer que é um escritor português não ajuda muito a situá-lo”, disse o moderador. “Porque a primeira coisa que chama a atenção na sua obra é como ela se destaca nos cânones das tradições mais enraizadas na literatura portuguesa e também na brasileira. A sua ficção recusa-se a deixar-se situar neste ou naquele lugar.”

Samuel Titan explicou também que a sua obra nada tem a ver com o realismo, regionalismo e a cor local tão fortes nas duas literaturas. "Os romances, os contos e as peças de Gonçalo M. Tavares começam por se livrar de todo o aparato real da ficção. Os seus personagens costumam ter nomes alemães, que fazem pensar mais em Kafka do que em Eça de Queirós. Eles não estão fora da história mas a história onde eles se situam não é a história de Portugal, do Brasil ou das colónias.”

A ideia de que toda a literatura é nossa contemporânea interessa ao autor da série de livros O Bairro e de Os Velhos Também querem Viver. Agrada-lhe tentar fazer qualquer coisa de novo com o antigo.

Gonçalo gosta de ler em cafés e anda normalmente com uma mochila às costas, que é para ele uma espécie de “modelador temporal”. Quando lá coloca um livro de Séneca, autor do império romano, e um livro de um autor do século XXI, eles estão lá naquele dia. “Se eu tiver na mochila dois livros separados por dez séculos, eles passam a ter a data de hoje. Os autores novos, os velhos, os gregos antigos, os autores do século XX e do século XXI são basicamente autores do mesmo dia”, diz. Agrada-lhe a ideia de que não há separações temporais, de que não há separações de géneros. Acha artificial a ideia de romance, ensaio, conto. Classificações “até perigosas” para quem escreve.

Elogio do ensaio
O escritor português defendeu que o mais importante da leitura não é quando lemos as letras mas quando levantamos a cabeça depois de ter lido uma frase. E é isso que a literatura permite, que a nossa cabeça funcione sozinha nesse momento em que a levantamos. “O livro é uma máquina de nos fazer levantar a cabeça e não olhar para nada”, diz Gonçalo M. Tavares. “99% das obras artísticas nasceram deste momento em que a pessoa suspende a cabeça”, quando nela se associam imagens, ideias.

Quando escreve, de alguma forma vê-se a investigar. Acredita que a maior das hospitalidades que podemos ter em relação às outras pessoas é sermos curiosos. “Curiosidade é uma hospitalidade mental, é alguém estar a falar de um assunto que eu não conheço e eu ser hospitaleiro, ouvir”, disse. Contou uma anedota, uma conversa entre duas pessoas em que uma pergunta: “O que achas pior a ignorância ou o desinteresse?” E a outra responde: “Não sei nem me interessa.” Hoje em dia, Gonçalo lê muito mais ensaio do que ficção. “Cada vez mais me cansa a ficção”, confessou.

Na plateia, Alexandro, que esteve a ler com a sua mulher O Senhor Kraus, um dos livros da série O Bairro, antes de ir para a sessão – “um livro interessante para ser ministrado em aulas como uma disciplina do tipo de introdução à política” –, falou do dilema de se morrer ou não por outro, de se sacrificar a vida por alguém, a que o escritor português se tinha referido no início da sessão a propósito do livro Os Velhos Também Querem Viver. Foi na altura das perguntas abertas ao público que Alexandro recordou a história de uma tia sua. “Ela tinha um marido, o meu tio, muito ruim e muito mau de saúde. Era muito dramática, começou a se lamentar e a falar: ‘Por que não me levar no lugar dele?’ Os filhos ouviram e os mais velhos muito traquinas disseram-lhe: ‘Mãe, não chama muito porque a morte vem e ela tem a forma de uma galinha sem penas’. Ela ficou com aquilo na cabeça. Eles moravam num sítio e os rapazes correram para o fundo da casa, pegaram uma galinha, depenaram e jogaram no terreiro. A tia saiu da porta de casa, viu a galinha, eles estavam escondidos e ouviram a mãe dizer: ‘Ele está no quarto, ele está no quarto!” Gargalhas sem parar por toda a sala.

Sugerir correcção
Comentar