Morreu Fernanda Montemor, a actriz de voz quente e delicada

Foi a Avó Chica da série Rua Sésamo, mas foi nos palcos que criou uma longa carreira artística, entre o Teatro Ginásio de Alves da Cunha e os Artistas Unidos de Jorge Silva Melo, passando pelo Teatro D. Maria II.

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Fernanda Montemor na produção dos Artistas Unidos, Tão Só o Fim do Mundo Jorge Gonçalves

A actriz Fernanda Montemor morreu na madrugada desta quinta-feira em Lisboa, aos 81 anos, confirmou ao PÚBLICO a companhia Artistas Unidos, onde a comediante trabalhou na primeira metade da década de 2000.

Fernanda Janeira de Sobral Pereira, que viria a assumir Montemor como apelido artístico, estudou teatro no Conservatório Nacional, em Lisboa. Estreou-se profissionalmente no Teatro Ginásio, companhia de Alves da Cunha, na década de 1950. Passou depois pelo Teatro do Povo, dirigido por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), pelo Teatro da Trindade, com Orlando Vitorino e Azinhal Ribeiro, pelo Teatro do Gerifalto, de António Manuel Couto Viana, e por outra companhia dedicada ao público mais jovem, o Teatro Infantil de Lisboa, onde durante seis temporadas foi dirigida por Fernando Gomes. 

Fez também parte do elenco do Teatro Estúdio de Lisboa, dirigido por Luzia Maria Martins (à Feira Popular), com quem trabalhou em peças de Edward Bond, Vaclav Havel e Lilian Helmann, entre outros. E sua carreira passou ainda pelo Teatro Nacional D. Maria II, mas seria com os grupos independentes que mais trabalhou, do Grupo 4 ao Teatro Aberto, do Teatro Ibérico aos Artistas Unidos.

Com a companhia de Jorge Silva Melo, participou em três produções, entre 2001-05: Os Irmãos Geboers, de Arne Sierens; Dois Irmãos, de Fausto Paravidino, além de Tão Só o Fim do Mundo, de Jean-Luc Lagarce, aqui dirigida por Alberto Seixas Santos.

Evocando agora a figura de Fernanda Montemor, o director dos Artistas Unidos lembra que, das primeiras vezes que foi sozinho ao teatro, no início dos anos 60, era a actriz que estava em palco, numa encenação de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, no Trindade. "E o que guardo na memória é a cena da fuga de Jessica, a filha do Schylock: 'Numa noite como esta...', ouço a voz delicada da Fernanda Montemor a dizer, com o seu leve sotaque beirão. Foi uma voz que me acompanhou, um timbre único, redondo, delicado, com belos graves", diz Jorge Silva Melo.

Em 2001, dirigiu-a nos seus Artistas Unidos: "Ensaiávamos no 11 de Setembro – 'O que foi aquilo? Aviões em Nova Iorque! Pessoas a atirarem-se do alto dos arranha-céus!...'". Foi a produção Os Irmãos Geboers "no edifício sujo d'A Capital, uma causa que ela defendeu sempre, entusiasta e crítica".

Voltaram a trabalhar juntos em Tão Só o Fim do Mundo, "que o Seixas Santos dirigiu, encantado", continua Jorge Silva Melo. E confirma que "Fernanda Montemor era um encanto, entusiasta, divertida, disposta a experimentar, atenta ao mundo, sincera, empenhada. O seu trabalho no espectáculo do Lagarce (ao lado da sua filha Teresa Sobral e da Joana Bárcia, do Américo Silva e do maravilhoso José Airosa ) era comovente, emanava ternura, amargura, talvez, mas acima de tudo ternura".

Jorge Silva Melo lembra ainda o trabalho de Fernanda Montemor "com João Lourenço (era irresistível na Dama do Maim's) e Mário Viegas (A Birra do Morto). "Nunca a vi falhar um papel; mas não se alçava em vedeta, era uma actriz que honrava o seu trabalho", acrescenta o encenador.

Fernanda Montemor que foi casada com o actor Mário Pereira (1933-1996)  fez também teatro na televisão Shakespeare, Molière, Dickens, Marivaux... –, e entrou nas séries Zé Gato e Duarte & Cia. Mas seria com a personagem da Avó Chica da série Rua Sésamo, na década de 80, que se tornaria conhecida do grande público. "Os da minha idade lembram-se dela (e da sua voz). Sim, a Fernanda foi das primeiras actrizes a ter trabalho regular na televisão. Mas afastou-se disso, não gostava do ritmo de produção que agora é imposto, ficava por casa com a sua cadela".

Em 2006, quando integrava, no D. Maria II, o elenco da peça A mais velha profissão do mundo, de Paula Vogel e encenação de Fernanda Lapa, foi distinguida pela então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, com a Medalha de Mérito Artístico.

"O que me fica dela, para além da sincera amizade? Aquela voz quente, a voz da Jessica a fugir de casa 'Numa noite como esta...'", recorda Jorge Silva Melo.

O funeral realiza-se esta sexta-feira, na igreja de S. Jorge de Arroios, em Lisboa. com Lusa

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