Ser descartável

A ameaça desperta o medo, e o medo é o principal inimigo da liberdade.

A onda de choque que atingiu Paris varreu toda a Europa como um tsunami de horror perante a execução sumária de quem entendeu ser seu dever – e direito – o exercício da livre expressão. Naqueles dias, fomos todos parisienses, porque a liberdade é uma aspiração profundamente arreigada no coração do homem, sejam quais forem os seus credos ou as suas diferenças.

Habituámo-nos a tomar a liberdade como um dos alicerces da nossa sociedade e fomos confrontados com as suas fragilidades.

Tenho para mim que a liberdade, tal como a perfeição, é um conceito, para o qual caminhamos sem nunca o atingirmos… porque é exigente, torna-se evolutivo e não se deixa aprisionar no espaço nem no tempo. Por este motivo, ninguém nos pode dar a liberdade a não ser sob a forma de um estado de direito, que transforma cada um de nós, simultaneamente, em seu beneficiário e seu defensor.

Defender a liberdade é um exercício quotidiano de pensamento e de actos, com a consciência de que, lutando em prol daquilo que entendemos ser o interesse da colectividade a que pertencemos, não podemos ser tratados – nem agir – como carneiros.

A história da Humanidade é uma sucessão de sucessos e retrocessos, em permanente evolução, em que a própria estabilidade, para sobreviver, não se pode render ao imobilismo. Aquele que se bate pela liberdade é, por definição, um inconformista e, porque questiona muitas vezes o status quo, pode transformar-se, à sua escala, num agitador; arrisca-se a provocar uma reacção que se reveste, quase sempre, de forma implícita e subtil (mas omnipresente) sob a forma de ameaça, com consequências bem reais…ameaça de despedimento, de despromoção, de ostracização, de estigmatização, de nadas que acabam por ser imensos, num quotidiano feito de pequenas coisas que, de um dia para o outro, se pode transformar num inferno.

A ameaça desperta o medo, e o medo é o principal inimigo da liberdade porque é contagioso, inibe e cala… quando o golpe atinge a brutalidade da semana passada, dá a volta ao mundo, gera movimentos universais de repúdio e as ruas pululam de multidões solidárias; no anonimato, o silêncio que se instala à volta de quem, no seu posto de trabalho, persiste na luta pela liberdade, faz com que esta seja, muitas vezes, um exercício de solidão.

Nos longos anos que levo no urbanismo da Câmara de Lisboa, lembro-me muitas vezes do que me disse o Eng.º Lemos Cardoso, então director municipal (feroz militante socialista e ainda mais feroz anti-PSD) quando se despediu, com um grande abraço: – Sra arquitecta, pensamos de forma muito diferente, mas ambos temos a mania de pensar pelas nossas cabeças: lembre-se sempre que isso nos torna descartáveis!

Deputada pelo PSD à Assembleia Municipal de Lisboa

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